Substantiva cidadania
Grande parte da população portuguesa, neste momento, experimenta a assistência do Estado. Quer sejam os que torcem o nariz para os apoios sociais ou para os que apontam o dedo aos beneficiários de rendimentos de inserção. Até mesmo para aqueles mais liberais, que defendem o Estado mínimo. A esses sugiro que tomem a iniciativa, que devolvam ou que doem para quem mais precisa.
Segundo o Ministério das Finanças, cinco milhões de portugueses receberão, neste mês, o apoio excepcional para o rendimento das famílias, tendo em vista a mitigação dos efeitos da inflação e da consequente escalada dos preços.
Entendo que os apoios são reativos, isto é, chegam atrasados. Os valores que estão a chegar nos lares portugueses não mitigam e não repõem o poder de compra corroído pela inflação. A taxa de inflação estimada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), em Setembro de 2022, representa o valor mais alto desde Outubro de 1992. Um apoio extraordinário pontual não é capaz de suprimir a maior taxa inflacionária dos últimos 30 anos. Precisamos de medidas mais ambiciosas.
Os principais efeitos da inflação incidem sobre a camada mais pobre. Repare que, com 125 euros a mais nas carteiras, não conseguimos honrar compromissos básicos. Imagina viver com apenas 189,66 euros? Conseguiria? Esse é o valor mensal do Rendimento Social de Inserção (RSI). O RSI é um mecanismo de combate à pobreza extrema. Não é um apoio excepcional nem é uma quantia extra. Para muitas famílias portuguesas, é a única fonte de renda. O requerente da prestação integra um programa de inserção que visa uma progressiva inserção ou inclusão social, laboral e comunitária dos seus membros.
Aproximadamente, 202 mil portugueses recebem o RSI. As prestações sociais destinadas àqueles que mais precisam são carregadas de preconceitos. Muitos beneficiários de programas sociais são rotulados como “acomodados”, “bloqueados” e “usurpadores”. É importante esclarecer que, apesar das desinformações que circulam nas redes sociais, os estudos indicam que, na totalidade dos beneficiários do RSI, cerca de 3% a 6% são da etnia cigana. No entanto, são os mais estigmatizados. Ao contrário do que muitos pensam, os ciganos não andam com carrões, não vestem roupas de grifes (ou marcas) caras, nem possuem o telemóvel da moda.
Uma análise da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) mostra-nos dados alarmantes: cerca de 96% dos portugueses ciganos vive na pobreza, 52% reside em habitações húmidas e escuras, 82% em alojamentos sobrelotados, enquanto 71% abandona prematuramente a escola.
O Serviço de Estatística da União Europeia (Eurostat) aponta mais números chocantes: a pobreza e a exclusão social atingem 22,5% dos portugueses com mais de 18 anos e uma em cada quatro crianças vive em situação de pobreza ou de exclusão social.
Ao depararmos com esses dados e factos, podemos afirmar que estamos desamparados. Os apoios existentes são parcos, não suprem nem colmatam as necessidades; não mudam as tristes e inadequadas realidades.
Estamos numa época marcada pelo desaparecimento dos empregos. Em detrimento da força de trabalho humana, é cada vez mais frequente o uso da robotização, da economia dos algoritmos e da inteligência artificial. A este conjunto de circunstâncias, adiciona-se as preocupações latentes, a crise financeira, o aumento da pobreza e o risco de exclusão social.
As medidas de apoio, as prestações sociais e os auxílios ainda são vistos como um paradoxo na sociedade portuguesa. Em algum momento, a sociedade terá de procurar abrigo sob novos sistemas de proteção social.
Recordemos que a Constituição da República Portuguesa é a lei suprema do país e que, como tal, consagra os direitos fundamentais dos cidadãos conquistados com a Revolução de Abril de 1974.
No dia 24 desse mês de há mais de 48 anos, às 22h55, a canção E Depois do Adeus, interpretada por Paulo de Carvalho, seria a primeira senha da Revolução dos Cravos. Por sua vez, Grândola Vila Morena, na voz de Zeca Afonso, foi escolhida pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) como segundo sinal para colocar os militares em marcha e iniciar a Revolução.
A partir de então, foram abundantes as baladas e as canções de intervenção. Todavia, hoje, para muitos, essas canções soam como melancólicas melodias. No entanto, não podemos perder o compasso revolucionário nem o ritmo progressista. O tempo presente deve também ser de produção de conteúdo social e de respostas para a cidadania.
31/10/2022