Tempos de poesia e de canto
Éramos oito, no domingo ao almoço, em casa dos meus avós. A refeição começava por volta das 13h00. Ou das 13h30, às vezes, esperando pela chegada da minha avó, depois da missa que se realizava relativamente perto de casa, na Igreja de Santo Domingo, em Concepción.
A ementa era fruto da sabedoria e da economia da minha avó Luísa, que muito se esmerou, inteligentemente, em aplicar, na sua vida e na nossa, uma lição de moderação para o futuro. A merenda acabava sempre com dois digestivos. O primeiro era uma espécie de mistela (na gíria rural) feita à base de aguardente aromatizada pelo sabor de ervas ou com frutos secos, sobretudo, castanhas e/ou amêndoas maceradas em calda ou almíbar (alfeni4). E o outro, que prolongava a refeição, era a recitação de um poema ou dois, pelo meu avô, e uma canção cantada pela minha avó. O estojo da guitarra estava sempre à mão, ao lado da mesa, à espera da executante.
O meu avô recitava sempre os dois mesmos poemas, dos quais guardo memória, extensos e cheios de imagens e de referências teatrais. Refiro-me aos poemas “Reir llorando” e a “El violín de Yanko”.
“Reir llorando” é quase o “Paradoxo Sobre o Comediante”, obra escrita no final do século XVIII por Denis Diderot, em que o actor que é capaz de fazer rir os outros, mas que vive preso numa profunda melancolia (spleen). Agradeço que leiam. No poema, alude-se a Garrick. Nessa altura, eu nada sabia dele. Mais tarde, aprendi que foi um dos grandes actores ingleses, o qual, juntamente com um outro actor inglês, Edmund Kean5, reabilitaram a cena inglesa com novas e interessantes interpretações das peças de William Shakespeare.
“O violino de Yanko” é um poema de profunda espiritualidade que caminha entre o sonho, a vida e a morte, ao construir um instrumento imaginário que abrirá ao protagonista o caminho do céu.
A minha avó fechava, em jeito de epílogo, com uma canção que era a minha preferida, de letra simples e que brinca melodicamente, cheia de picardia e de humor: “La petaquita” (pequeno estojo para transportar alguns charutos ou tabaco picado – geralmente, feito de couro ou de outro material adequado).
Ao procurar dados sobre esta canção, a propósito deste meu artigo e para possível audição pelos meus leitores, ela aparece como sendo da autoria de Violeta Parra. Julgo que – sem ser especialista nem, muito menos, pretensioso nesse sentido – a canção é mais antiga que a própria Violeta Parra, atendendo à idade da minha avó. Penso que faria, sim, parte da recolha realizada pela famosa folclorista chilena, como se poderá ler mais adiante.
Sobre este assunto encontro uma curiosa nota, de há três anos, que assinala:
“[…] esta canción fue recopilada por Violeta Parra al interior de la República de Hualqui, fue invitada a una casa de adobe a tomar once, con café de trigo y tortilla de rescoldo (cocida con las cenizas del fuego) a 550 kms al sur de Santiago de Chile, en la República de Hualqui, en la 8va Región Chile. La República Independiente de Hualqui fue un alzamiento breve de la comuna de Hualqui contra las autoridades chilenas, en 1823, en el contexto de la Guerra de Independencia de Chile, y la llamada ‘Guerra a Muerte’ […]”
Cabe destacar que a recolha de Violeta Parra está muito próxima das realizadas em Portugal pelo etnógrafo corso Michel Giacometti (1929-1990) e daquela que, na ilha da Madeira, realizaram o músico Artur Andrade (1927-1992) e o poeta e dramaturgo (também pintor e escultor, bem como director do Arquivo Distrital do Funchal) António Aragão(1921-2008), ambos meus amigos.
O meu avô continuou a recitar os seus poemas, mesmo quando cegou completamente, nos seus últimos anos de vida. Mas conservou, sempre, uma luminosidade brilhante nos olhos, digna de um Homero nas suas narrações… Ao seu lado, a minha avó também continuou a cantar e a retirar da viola arpejos vibrantes com ares da música colonial… Passado todo este tempo, reflicto sobre o que aprendi com eles, reconhecendo que para construir um mundo de imagens bastavam, apenas, uma canção e dois poemas.
O meu pai faria, no passado dia 4 de novembro, 100 anos. Foi militante socialista do PS chileno e dirigente regional/distrital desse partido. Livreiro como os meus dois avôs, doutorou-se mais tarde em Filosofia, foi decano e director do Instituto de Filosofia da Universidade de Concepción. Durante o exílio (de quase 19 anos), viveu na cidade de Frankfurt/Main (Frankfurt sobre o Meno), leccionando na Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt e na Volshochscule Volkshochschule dessa cidade da então República Federal Alemã.
.
Notas:
1 – Marcos Rafael Blanco Belmonte (1871-1936): poeta, escritor, tradutor e jornalista espanhol. Em 1896, foi editor do jornal cordovês La Unión. Mais tarde, mudou-se para Madrid, onde foi editor do jornal El Español e, em 1900. da La Illustration Española y Americana. Também colaborou, frequentemente, noutros semanários ilustrados. Foi membro da Associação de Imprensa de Madrid e premiado na Academia pela sua poesia. É descrito como um “poeta de casta, com letras objectivas e épicas […], que cantava as crianças abandonadas e a Pátria com eloquência ardente”.
2 – David Garrick (1717-1779) foi um actor e dramaturgo britânico. É considerado como uma das principais figuras do teatro inglês do século XVIII.
3 – Juan de Dios Pedro Pablo Peza Osorio (1852-1910) foi um poeta, político e escritor mexicano.
4 – Alfeni(m) é uma massa branca e dura, feita de açúcar e de óleo de amêndoas doces, sendo usada para fazer doces delicados.
5 – Edmund Kean (1787-1833), actor inglês, reputado, na sua época, como o maior de todos os tempos.
6 – La Petaquita (excerto)
7 – “Violeta Parra Anthology“, cujo nome completo é “Violeta Parra Anthology: Original Recordings on EMI Odeón 1954-1966” (ou “Antología Violeta Parra: Grabaciones Originales en EMI Odeón 1954-1966”) é uma colecção de quatro CD que reúnem gravações que a artista chilena Violeta Parra realizou nas décadas de 50 e de 60 do século XX. Cabe assinalar que as notas desta edição discográfica contêm vários erros na atribuição autoral das canções.
.
16/11/2023