Teoria marxista do jornalismo: atual e necessária
Foi em 1987 a publicação do livro “O Segredo da Pirâmide: Para uma Teoria Marxista do Jornalismo”, de Adelmo Genro Filho. E foi a primeira vez que se constituiu uma teoria para o jornalismo. Até então, o que se tinha eram teorias da comunicação, coisas muito amplas. Adelmo singularizou. Mudou a temperatura do jornalismo, porque o colocou como uma forma de conhecimento capaz de oferecer uma visão totalizante dos fatos. Uma tarefa difícil numa profissão que colocava como o máximo responder às cinco perguntas básicas apontadas pelo famoso repórter Rudyard Kipling: “O quê?”, “Porquê?”, “Onde?”, “Como?” e “Quando?”.
Passados 37 anos do surgimento dessa luminosa obra, muitos autores consideram a teoria de Adelmo algo datado, que não tem mais sentido no mundo atual. Nada mais tolo. A teoria de Genro Filho não apenas é atual como absolutamente necessária nestes tempos ditos pós-modernos em que o capitalismo venceu e a Humanidade parece ter perdido a capacidade de compreender a realidade. Tal como já ensinou outro “datado” – Karl Marx –, apreender os fatos na sua totalidade é fundamental para que o conhecimento se faça de verdade.
Observando a realidade dos jornais que ainda sobrevivem na Internet (poucos são impressos) o que menos se vê é jornalismo. Quase nada é narrado com contexto e interpretação. São fatos que se sucedem na tela, desconectados e superficiais. No geral, notas de polícia ou sobre famosos. As reportagens desapareceram.
Nas chamadas “redes sociais”, as informações igualmente surgem na tela, numa infinidade de temas, mas, porque limitadas pelo tempo, não conseguem dar ao leitor/espectador/ouvinte a compreensão totalizante sobre cada coisa. Tudo passa ligeiro. E questões cruciais da vida misturam-se com dancinhas, influenciadores e fofocas. É a interminável algaravia já descrita por Ray Bradbury no seu famoso livro “Fahrenheit 451”, publicado em 1953 e que já prenunciava o futuro.
A onda irracionalista, descrita por György Lukács no seu livro “O assalto à razão”, está no seu auge.
Mas, isso não é fruto do acaso. Existe aí uma lógica muito bem urdida. Afinal, sempre que os trabalhadores se levantam em rebelião, com tal força que possa abalar o modo capitalista, os serviçais do sistema logo respondem com alguma ideologia que possa se contrapor. Daí a importância do irracionalismo, que é uma maneira de pensar a realidade baseada em mitos e desconectada da universalidade dos fatos.
Lukács mostra que sempre que a classe trabalhadora protesta, a burguesia contra-ataca. É uma lógica que se repete desde que o capitalismo venceu o feudalismo e deixou de ser revolucionário. Para se manter, sempre explorando os trabalhadores, precisa de conservar as massas desorganizadas e desorientadas. Foi assim que o irracionalismo assomou no pós-1848 (a Primavera dos Povos) e teve novas ondas, não por acaso, depois da experiência da Comuna de Paris, em 1871, bem como depois da Revolução Russa, em 1917, e, mais tarde, posterior à grande onda de protestos iniciada em 1968.
E é por aí que estamos hoje, vivendo o auge do que os Europeus chamam de pós-modernidade, que nada mais é do que uma outra reação da burguesia contra os trabalhadores. Há que desorganizar, desestruturar, dividir, criar mitos, manter as massas alienadas em temas que não implicam mudança na vida. Aliado com as novas tecnologias, o irracionalismo finca raízes profundas nas pessoas. Tudo muito bem articulado pelos sacerdotes do capital, para usar uma expressão de Vieira Pinto.
Campanhas antivacina, ascensão de “mitos” reacionários, construção de inimigos imaginários, imbecilização, fragmentação da vida, identitarismo, TikTok, hedonismo, fundamentalismo religioso, individualismo e outros afins, além de outras tantas propostas que se encarregam de manter as pessoas longe de uma visão totalizante da realidade.
Karl Marx já advertia nos seus trechos de 1844″, também chamados de “manuscritos de Paris”, (ou “Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844”), quando ainda não havia elaborado sua grande obra “O Capital”, que o trabalho, no sistema capitalista era tão degradante para o ser humano que, a seguir como estava, iria desvinculá-lo do gênero humano. Ou seja, esgotado pelo trabalho, o trabalhador buscaria comer e dormir (funções básicas dos animais) e não teria tempo nem condições de crescer como humano (a partir da arte, do lazer, da cultura).
O máximo ao que poderia chegar era a um ser brutalizado pelo processo de exploração, perdido de sua humanidade. Hoje, além de comerem e dormirem, os trabalhadores são levados também a perderem o seu precioso tempo livre na angustiante e repetitiva tarefa de passar o dedo pelo celular, acompanhando uma sequência aleatória de informações, misturada com dancinhas e outras bobagens. Sem chance de se desenvolver como um ser humano. O trabalho tirando o sangue e o celular tirando mais-valia ideológica.
Neste cenário, então voltamos ao jornalismo e a Adelmo Genro Filho: se estamos no auge de mais uma onda irracionalista, o marxismo – por reivindicar a totalidade – parece ser a única estrada a seguir. Daí a necessidade de buscar essa ferramenta para produzir a informação. Como Adelmo ensina no seu livro “O Segredo da Pirâmide”, a notícia precisa de ser construída a partir do singular, mas tendo a capacidade de transitar para o particular e para o universal. Isso significa que, ao narrar um fato qualquer, é preciso também oferecer ao leitor/espectador/ouvinte a atmosfera totalizante que envolve aquela situação. Não basta dizer que há um genocídio na Palestina, há que buscar as raízes do conflito, fornecer os mais variados pontos de vista, apontar as contradições, expor o que se esconde. E há que fazer isso em cada notícia, para que as informações não fiquem pulando na cara de maneira fragmentada, impedindo a sua compreensão. É fato que isso não é uma coisa fácil. O jornalista precisa de estudar muito, de conhecer bem a realidade que cerca o fato, de analisar e de compreender. É um longo e árduo trabalho. Mas, é a única forma de oferecermos ao leitor/espectador/ouvinte o conhecimento sobre o fato.
Num mundo tão fragmentado, essa tarefa de desvelar a estrutura que está por trás dessa realidade é fundamental. Mostrar – politicamente, socialmente e filosoficamente – por que a realidade parece tão confusa é crucial. Assim, entendendo o movimento do capital e sua capacidade de moer gente, talvez seja possível provocar alguma mudança. A notícia apresentada tal como propõe Adelmo, capaz de oferecer uma visão totalizante do fato, aparecerá como um respiro da razão, esta mesma razão que é surripiada pelo capital e que impede os trabalhadores de se desenvolverem como gênero humano.
É lógico que não é o jornalismo que vai salvar o Mundo, mas falo desde o meu quintal profissional, que é de onde atuo no Mundo. E, deste modo, insisto: a teoria marxista do jornalismo não só é atual como necessária. Há que se apropriar dela e empreender a difícil tarefa de narrar a vida em profundidade. Olhando para o mundo atual está bem claro que o capitalismo conseguiu vencer mais uma vez. Fomos derrotados. Mas, isso não significa que não seja possível garantir células de rebelião. A vida é dialética, está em movimento, e os seres humanos estão sempre procurando viver melhor. Assim, mostrar a realidade, mostrar a lógica do capital, expor as suas vísceras é a nossa tarefa. Bem como apontar a utopia concreta: o mundo do comum, do comunismo, quando poderemos desenvolver todas as nossas potencialidades humanas.
Encerro com um provérbio popular que define bem a nossa empreitada: os que compreenderem se salvarão, os que não compreenderem não se salvarão.
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Nota do Director:
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15/02/2024