Ter licença para aprender sozinho
(*)
Uma noite, já não sei quando, sonhei viver num país onde a escolaridade mínima obrigatória era uma licenciatura universitária. Nesse país, ninguém ousava dizer que não podíamos ser todos licenciados – ser licenciado até era obrigatório.
Este sonho é tanto mais estranho quanto eu frequentei o ensino liceal privado num tempo em que existia um ensino liceal público e um ensino técnico público – a unificação dos liceus e das escolas técnicas em escolas secundárias aconteceu quando eu já andava na universidade.
Se a separação entre o ensino liceal e o ensino técnico foi alvo de uma grande contestação, logo após o 25 de Abril de 1974, a unificação não foi consensual e ainda hoje há quem diga que não podemos ser todos doutores, ou seja, licenciados.
Conheci uma pessoa, por sinal licenciada, que equiparava uma licenciatura a uma suposta autorização – ser licenciado seria, apenas, ter licença para aprender sozinho. Esta imagem sempre foi, a meus olhos, muito feliz.
Isto num tempo em que as estatísticas revelavam que só quatro por cento dos filhos de casais da chamada classe trabalhadora conseguia entrar na universidade. Por insuficiência dos orçamentos familiares, como se depreende.
Hoje, essa percentagem é bastante superior, fruto de uma certa “democratização” no acesso ao ensino superior, mas este, entretanto, também perdeu algum peso, nomeadamente com o afunilamento dos cursos superiores saídos do Processo de Bolonha.
Há mais gente nas universidades, mas também há quem suspeite que estejamos a lançar para o mercado ondas e ondas de licenciados que caminham para uma espécie de proletariado intelectual, semi-analfabeto, tanto no aspecto técnico e cultural como no aspecto cívico.
Haverá mais escolaridade, embora isso não signifique, realmente, que haja uma maior escolarização autêntica. Está por conseguir a escola inclusiva, uma escola que promova estratégias que visem a igualdade de oportunidades de sucesso, muito mais do que as igualdades de oportunidades de acesso.
A igualdade de oportunidades de sucesso é coisa de países como aquele onde eu, há tempos, sonhei viver. O tal em que a escolaridade mínima obrigatória é uma licenciatura universitária e onde ninguém consegue dizer que não podemos ser todos doutores.
Aí, ser doutor, ser licenciado, é apenas ter licença para aprender sozinho. É ter uma base cultural e humanista capaz de valorizar qualquer actividade humana útil e necessária, sem preconceito. É ser capaz de melhor identificar a mentira e a falsidade.
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(*) Artigo no âmbito do programa “Cultura, Ciência e Tecnologia na Imprensa”, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa.
01/08/2022