“Terra natal” no Teatro da Rainha
Terra Natal é o título de uma de duas peças curtas, do escritor australiano Daniel Keene (Melbourne, 1955), que o encenador Luís Varela (Lisboa, 1950) decidiu juntar num mesmo espectáculo. A outra é A Chuva. Estreiam dia 6 de Maio, no Teatro da Rainha, em Caldas da Rainha, formando uma espécie de díptico em que as recordações pessoais e a memória histórica se cruzam no corpo de personagens dolorosamente reais. Considerada uma das peças curtas mais belas de Keene, A Chuva evoca o holocausto nazi através das memórias de uma idosa. Por sua vez, em Terra Natal assistimos a um conflito entre as diferentes gerações de uma mesma família. São peças que resultam como poemas, textos abertos a múltiplas interpretações. Falámos com Luís Varela para sabermos um pouco mais acerca deste novo trabalho.
sinalAberto — Daniel Keene é um dramaturgo australiano praticamente desconhecido por cá. Como surgiu o interesse pela obra dele?
Luís Varela — Desde que deixei de estar integrado numa companhia de repertório (o Centro Cultural de Évora, depois CENDREV), a escolha do repertório que enceno tem muito de acidental, às vezes de caprichoso. Cheguei a Daniel Keene há muitos anos: o meu amigo Jean-François Lapalus, actor exigente e de fino gosto, passou-me o primeiro volume das peças curtas que li com muito interesse. Mais recentemente, muitos anos depois, o meu amigo Pierre-Etienne Heymann, encenador e espectador intransigente, falou-me muito agradado duma encenação de uma das suas peças longas vista em Paris: Dreamers. Regressei a Keene, a essa peça e ao resto das peças curtas publicadas em língua francesa. Depois, somou-se o convite do Teatro da Rainha e a necessidade de escolher uma peça (ou duas, no caso) cujo elenco e pressupostos de realização se adequassem às condições e meios de produção da companhia.
sA — A Chuva e Terra Natal são duas peças curtas. Keene diz algures que começou a escrever este tipo de textos para tentar perceber se uma peça podia funcionar como um poema. Será que pode?
LV — A resposta deveria apoiar-se numa prova: a encenação. Assim, a pergunta implícita seria: «O espectáculo que resulta da tua encenação funciona como um poema?» Eu fiz tudo nessa direcção, conjugando as contribuições dos actores, do cenógrafo, do desenhador do espaço sonoro, do figurinista, do iluminador no sentido da obtenção de um objecto sonoro e visual que pudesse ser percebido, recebido mais com instrumentos emocionais do que intelectuais, ao contrário do que poderia ser uma tendência minha na abordagem dum texto de teatro.
sA — Terra Natal (1997) é cronologicamente anterior a A Chuva (1998). Diferentes na forma, têm porém a ligá-las a presença fortíssima de uma personagem idosa. Será possível descobrir alguma complementaridade entre as duas peças a partir desta personagem?
LV — Não sei se há complementaridade, a tal ponto as temáticas se afastam: o Holocausto, com o peso que tem na nossa cultura europeia em A Chuva, e a banalidade e insignificância das vidas de gente comum da actualidade, algures numa cidadezinha duma qualquer “austrália”, em Terra natal. O que há talvez mais é uma recorrência de temas, de tópicos, de imagens literárias, de fantasmas que atravessam estas e as outras peças curtas de Keene e que se põem a dialogar pelo simples facto de serem pronunciados, exibidos. O mais forte desses indícios, quando se juntam estas duas peças em particular, é efectivamente a presença de uma mulher idosa, protagonista dum longo monólogo em A Chuva (Hanna, uma velha) e de uma Avó portadora de um discurso bem diferenciado sobre a vida, a História, o amor, a liberdade, a memória em Terra natal. Em dois terrenos tão distintos há-de afirmar-se, não uma complementaridade, mas uma coincidência, um contacto, uma repetição de algo parecido com um estar no mundo daquelas duas personagens que ganham corpo na mesma actriz (o que tem uma importância enorme, no caso).
sA — Os diálogos de Terra Natal colocam em tensão três gerações de uma mesma família. Achei curiosas as referências astrológicas, por me parecerem contrastar com a dinâmica de opções e decisões em causa. À excepção da avó — «Quando se é velho consegue-se ficar completamente imóvel.» —, todas as personagens vivem agitadas pelos seus conflitos interiores. O destino está nas estrelas ou nas opções que fazemos?
LV — Gostava de não responder a esta pergunta. Por uma vez, de forma muito deliberada, encarei a encenação como uma espécie de exposição, de disposição dos dados que permita ao espectador a construção de sentidos, ou de arremedos de sentido, em vez de assumir eu à partida uma direcção, um rumo da fábula. Estou, perante estes textos, mais na posição de mediador que de intérprete. Gostava de conseguir que a tua pergunta pudesse ser formulada por algum espectador, depois de ver o espectáculo.
sA — A insegurança do filho, a frustração do pai, os receios da mãe, tudo isto temperado por uma espécie de bloqueio emocional. Parece ser uma peça de diálogos sobre a incapacidade de dialogar. Estarei a ver bem?
LV — Já percebeste que, pela mesma razão, gostaria de não responder a esta pergunta.
sA — O título Terra Natal remete para as raízes. No monólogo A Chuva isto também está presente, nomeadamente na origem dessa chuva a que a peça alude. Que personagem é Hanna, uma sobrevivente ou uma vizinha do holocausto?
LV — Keene diz algures que os personagens são o que proferem. Hanna é inequivocamente uma testemunha. E mais — e estará aí a sua dimensão trágica —, uma testemunha viva de acontecimentos que ainda não sabia ler. É o drama dela. Está ali, quieta, de pé, parada no meio do descampado, e os deportados dão-lhe coisas e ela guarda-as, inventaria-as, conserva-as tanto tempo quanto o tempo deixa. Daí o peso do frasquinho de farmácia com uns centilitros de chuva que um menino com uma espessa cabeleira negra um dia lhe deu. É uma testemunha carregada com o peso da ignorância e do remorso. (Aqui pareço entrar em contradição com as minhas recusas a responder taxativamente sobre Terra natal, mas é porque as duas peças, tão diferentes, põem questões diferentes, mesmo no plano da enunciação.)
sA — A certa altura diz: «Não quero imaginar». A sua vida é um investimento na memória contra o esquecimento. Será por isso que recusa a imaginação?
LV — É a culpa, o remorso de ter dito ao menino, tão menino como ela, “tu vais voltar” e de ter recebido tanta coisa tão preciosa de tantas e tantas pessoas que partiam sem se interrogar sobre o seu destino.
sA — Parece existir nas duas peças uma abordagem da relação trágica que temos com o tempo. Hanna guarda os objectos como memórias de vidas que se perderam. Terra Natal está marcada, desde o início até ao fim, pela celebração da passagem do tempo: o aniversário de Filipe. «O tempo não pára para ninguém», diz o pai ao filho. Já a avó perde-se em evocações do passado. No entanto, os objectos guardados por Hanna estão a apodrecer e a desfazer-se em pó. A avó de Filipe está empenhada em que ele conheça a sua história, mas ele resiste-lhe. Como é que esta relação com o passado pode ser interpretada actualmente? Por vezes parece que há um desinvestimento na memória em prol de um investimento no esquecimento. Não estará latente nestas peças um olhar crítico sobre o modo como estamos a preservar as nossas memórias colectivas e as nossas histórias pessoais?
LV — Há uma coisa de que não falámos. A combinação destas duas peças é uma de centenas de combinações possíveis das peças curtas de Keene. Eu não gostaria de tirar conclusões demasiado categóricas sobre o teatro e a poética do dramaturgo a partir de uma das muitas combinações possíveis. Não sei se algum encenador antes fez esta combinação. Sei que para mim faz todo o sentido, sobretudo tendo presente o elenco de que posso dispor no Teatro da Rainha. Escrevi numa das minhas notas sobre o trabalho que há outras combinações tão ou mais pertinentes ou defensáveis dum ponto de vista de uma certa lógica narrativa, das isotopias temáticas. Imagina A Chuva e O Violino. Estaríamos no universo trágico do Holocausto. Imagina Terra natal e Pedra, papel e tesoura, que Jorge Listopad encenou em 2007 no Teatro de Almada. Estaríamos no universo do proletariado enfrentando a expulsão do mundo do trabalho. Por isso, prefiro falar do universo Keene, mais do que da resultante desta montagem improvável, acidental, poética. O universo de Daniel Keene…
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27/04/2021