Toda a ambição político-estratégica sobre o alheio quer ter razão

Vladimir Putin mobiliza reservistas e faz ameaça nuclear. (© DW)
Num momento em que as forças armadas russas sentem dificuldades na guerra na Ucrânia, com os ucranianos a recuperar alguns dos territórios perdidos, Vladimir Putin eleva a fasquia e, num discurso a 21 de setembro – dia em que o presidente Joe Biden discursou na 77.ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, e em que estava prevista a intervenção, por videoconferência, do presidente ucraniano, como indica a programação da ONU –, anunciou a “mobilização parcial” de cerca de três centenas de militares na reserva e o aumento do fabrico de armamento, ameaçando utilizar todos os meios que a Rússia tem à disposição e que são “mais poderosos” do que os da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).
O poder dos meios disponíveis (serão todos utilizados, se necessário) foi invocado na alegação putiniana de que o Ocidente tem ameaçado atacar a Rússia com armas nucleares e de destruição maciça, pois, segundo o presidente russo, “o objetivo do Ocidente é enfraquecer, dividir e destruir a Rússia” através da supressão dos “centros de desenvolvimento soberanos e independentes” no Mundo. Com efeito, os ocidentais dizem que, em 1991, desmembraram “a União Soviética e que agora chegou a vez da Rússia”.
Por isso, Putin seguiu a sugestão do Ministério da Defesa para mobilização parcial de militares na reserva”, que “terão treino para reforçar a operação militar” na Ucrânia, estando já o respetivo decreto assinado, pelo que a mobilização começará de imediato.
O presidente russo acusou o Ocidente de querer, para campo de batalha, o território russo e que há regiões na “fronteira que estão a ser bombardeadas”, tal como frisou que há ucranianos feitos reféns pelo governo de Kiev e que a “política de terror das forças ucranianas é “cada vez maior”, pois “atacam hospitais e escolas”, pelo que o Kremlin não deixará de apoiar as pessoas.
Vladimir Putin confirmou que há referendos nas repúblicas cuja independência reconhecera, antes da invasão de 24 de fevereiro, ou seja, nas regiões separatistas. Afiançou que o Kremlin fará tudo para “garantir a segurança” nesses referendos e que as forças armadas russas estão numa linha da frente de cinco mil quilómetros para manter a segurança do seu povo.
Sobre as negociações de paz, disse que a “Ucrânia gostou” das propostas russas em Ancara, mas que o Ocidente “obrigou a Ucrânia a recusá-las”. E recordou que a guerra começou em 2014, ao cometeram um genocídio, dando à Ucrânia um regime ditatorial.
O discurso do líder russo à nação surge também quando os líderes separatistas avançaram com referendos na região do Donbass, de 22 a 27 de setembro, nos territórios ocupados pelas forças pró-russas para decidirem sobre a anexação. Na verdade, as câmaras públicas das Repúblicas Populares de Lugansk e de Donetsk apelaram aos líderes das duas províncias separatistas a que realizassem, imediatamente, referendos sobre a adesão à Rússia, após o qual a região de Kherson e, depois, Zaporíjia se lhe juntaram no dia 20. E, respondendo aos apelos das autoridades pró-russas no Donbass, os representantes de um órgão consultivo pró-russo na região de Zaporíjia, parcialmente controlada pela Rússia, juntaram-se aos colegas de Lugansk, de Donetsk e de Kherson, para a realização imediata de referendo sobre a adesão. Porém, a comunidade internacional condenou tais decisões, julgando ilegítimos os referendos, pelo que não reconhecerá as anexações.

Logo que Putin terminou a sua muito aguardada comunicação, choveram as reações. “Um passo previsível que se revelará extremamente impopular” e um sinal de que a guerra está a correr mal à Rússia – foi assim que a Ucrânia viu o anúncio de mobilização parcial. Mykhailo Podolyak, conselheiro do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, disse que o presidente russo quer transferir para o Ocidente a culpa pelo início da “guerra não provocada” e pelo agravamento da situação económica da Rússia.
Por sua vez, Robert Habeck, vice-chanceler alemão, tem a mobilização parcial por nova escalada do conflito na Ucrânia. Por isso, o governo de Berlim está a considerar a sua resposta, aduzindo que este foi “mais um passo mau e errado da Rússia”.

controlar [as armas nucleares]. Também não tenho a certeza se ele está no
controlo”, declara a britânica Gillian Keegan. (www.gov.uk)
“Escalada” também foi o termo escolhido por Gillian Keegan, deputada do Partido Conservador (no governo) que foi apontada como representante para os Negócios Estrangeiros do parlamento do Reino Unido. “A declaração de Putin é obviamente uma escalada, uma preocupante escalada” na guerra”, declarou, em reação ao discurso em que Putin anunciou a mobilização parcial e ameaçou utilizar o seu arsenal nuclear. E vincou: “Devemos levar as ameaças de Putin a sério, porque nós não estamos a controlar [as armas nucleares]. Também não tenho a certeza se ele está no controlo.”
Também Ben Wallace, ministro da Defesa britânico, frisou que Putin quebrou a promessa de “não mobilizar”, o que, para o Reino Unido, é assumir “que a invasão está a falhar”, estando a Ucrânia a vencer esta guerra e a Rússia a tornar-se um pária internacional. Segundo o ministro, que vê a comunidade internacional unida, a Rússia mandou milhares de cidadãos para a morte, “mal equipados”; e o Reino Unido é um dos países ocidentais que mais se tem empenhado no apoio à Ucrânia, fornecendo equipamento, munições e treino aos militares de Kiev.

(Créditos fotográficos: NurPhoto / Getty Images)
A embaixadora dos Estados Unidos da América (EUA) na Ucrânia, Bridget Brink, pontuou o discurso: “Os referendos fraudulentos e a mobilização são sinais de fraqueza.” Por isso, os EUA não reconhecerão a reivindicação da Rússia sobre esses territórios ucranianos e continuarão a estar com a Ucrânia “pelo tempo que for necessário”.
Pekka Toveri, major-general do exército finlandês na reserva, que foi, até 2020, chefe dos serviços de informações militares da Finlândia, questionado sobre se a mobilização parcial trará um número decisivo de militares para a linha da frente nos próximos 6 a 12 meses, respondeu: “Não”.
Enquanto milhares de cidadãos são detidos na Rússia por gritarem contra a guerra, muitos milhares estão a abandonar o país rumo ao Ocidente, tal como muitos pró-russos o estão a fazer a partir do Donbass e da Crimeia
Por outro lado, a garantia de Putin de que só os reservistas – os que têm experiência militar – serão mobilizados não corresponde à letra do decreto presidencial. Ekaterina Shulman, analista política russa, garante que o decreto não especifica parâmetros (nem territoriais nem sobre categorias de indivíduos), pelo que qualquer pessoa pode ser mobilizada, exceto os trabalhadores do complexo militar-industrial, que têm prolongamento do seu período de trabalho.

E Anders Åslund, economista sueco, escreveu no Twitter que, “como estratega falhado que é, Putin está a acelerar o colapso do seu regime, apelando a uma mobilização parcial”.
Por seu turno, o Ministério das Relações Exteriores da China pediu que todas as partes se empenhem no diálogo e na procura de um modo de abordar as preocupações de segurança de todas as partes, depois daquilo que considerou como “chantagem nuclear” da parte de Putin. “A posição da China sobre a Ucrânia é consistente e clara”, afirmou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, em conferência de imprensa
O primeiro-ministro português, António Costa, classificou o discurso de Putin de “desilusão”.
A União Europeia (UE) promete reforçar as sanções à Rússia, que agravarão, mais uma vez, as condições de vida dos seus cidadãos, e diz que enviará mais armas para Kiev.
Entretanto, enquanto milhares de cidadãos são detidos na Rússia por gritarem contra a guerra, muitos milhares estão a abandonar o país rumo ao Ocidente, tal como muitos pró-russos o estão a fazer a partir do Donbass e da Crimeia.
***
O presidente dos EUA, no seu discurso na 77.ª Assembleia-Geral da ONU, acusou a Rússia de violar a Carta das Nações Unidas: “Um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas invadiu o seu vizinho, tentando apagar um Estado soberano do mapa.”

E, censurando Putin de ter voltado a “fazer ameaças nucleares contra a Europa, num desrespeito imenso pelas responsabilidades de um regime”, Joe Biden criticou a decisão russa de chamar mais soldados para o terreno e de realizar referendos para tentar anexar partes desse país vizinho: “O mundo deve ver estes atos escandalosos por aquilo que são: Putin diz ter agido porque a Rússia foi ameaçada; mas ninguém ameaçou a Rússia e ninguém para além da Rússia procurou um conflito.”
Para o presidente norte-americano, “esta guerra tem como objetivo extinguir o direito da Ucrânia de existir como um Estado e como povo”, pelo que se justifica o apoio financeiro e material dos Estados Unidos e de vários outros países a Kiev.
Considerando que há uma batalha entre democracia e autocracia, o líder norte-americano disse acreditar que “a democracia continua a ser o maior instrumento para responder aos desafios que enfrentamos”, estando a trabalhar com o grupo G7 para o provar. E acusou a Rússia de espalhar mentiras, culpando da crise alimentar as nações que lhe impuseram sanções, quando as sanções permitiram explicitamente “que a Rússia exporte comida e fertilizantes, sem limitações”.
Joe Biden, no seu discurso na 77.ª Assembleia-Geral da ONU, acusa a Rússia de violar a Carta das Nações Unidas: “Um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas invadiu o seu vizinho, tentando apagar um Estado soberano do mapa.”
Por fim, o líder americano garantiu que os EUA continuarão a lutar pelas negociações de paz entre Israel e Palestina, defendendo uma solução de dois Estados para “assegurar a segurança e dar aos Palestinianos o Estado a que têm direito”. Apelou a que todas as nações renovem os esforços diplomáticos contra a proliferação nuclear. Condenou a Rússia pelas ameaças nucleares, bem como a China, a Coreia do Norte e o Irão, que acusou de violarem as sanções da ONU. Garantiu não permitir que o Irão adquira uma arma nuclear. E disse acreditar que “a diplomacia é a melhor forma de conseguirmos esse resultado”.
***
Entretanto, enquanto Putin desmente Biden, julgando infeliz o seu discurso, a administração norte-americana antevê o apoio explícito, no local, com militares e armas, a Taiwan contra a República Popular da China, quando, na Ucrânia, o apoio é limitado a armas e a mercenários.
Os líderes brincam à guerra com pessoas, com maquinaria sofisticada e com armas do último modelo, sustentados, ao invés dos miúdos que brincam com as suas consolas, em razões geoestratégicas, históricas, culturais, políticas e religiosas – tudo a satisfazer a ambição expansionista ou os mais apetecíveis negócios, contra tudo e contra todos. Depois, deixam o terreno e as pessoas. E que é feito da paz?
26/09/2022