Tragédia humana anunciada e premeditada
- Estudo revela estratégia de disseminação do vírus

 Tragédia humana anunciada e premeditada - Estudo revela estratégia de disseminação do vírus

Jair Bolsonaro, sem máscara, provoca aglomeração em recente visita ao nordeste do Brasil. (Fonte: UOL)

A pandemia de Covid-19 vitimou no Brasil, até março de 2021, mais de 285 mil pessoas. Uma tragédia anunciada por instituições científicas e de saúde pública há meses, mas sistematicamente ignorada por homens públicos e parte da população. Atônitos, vivenciamos o colapso do sistema de saúde e o esgotamento físico e mental dos profissionais que nele atuam, enquanto especialistas dos mais variados campos do conhecimento tentam encontrar explicações para a banalização da morte em um país onde já não há tempo para o luto.

Há quem avalie que a tragédia humana e social no Brasil seja fruto de negligência ou incompetência do atual grupo civil-militar que (des) governa o país no trato da Covid-19. Mas um estudo revelador mostra que não. Segundo a pesquisa, com a justificativa de proteger a economia a qualquer custo, o governo federal vem executando, desde o início da pandemia, estratégias para disseminação do vírus. Por meio de atos normativos e propaganda contra a saúde pública, desacredita propositadamente a ciência e as autoridades sanitárias. Ações, segundo o documento, que se configuram crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade, o que vem sendo apontado por muitas entidades.

A pesquisa foi publicada em meados de janeiro no Boletim Direitos na Pandemia nº10, iniciativa do Centro de Estudos e Pesquisa em Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Cepedisa/FSP/USP), em parceria com a Conectas Direitos Humanos, organização da sociedade civil sem fins lucrativos. Em formato de linha do tempo, o estudo pontua, de março de 2020 a janeiro de 2021, as ações premeditadas do governo, incluindo as falas do presidente Jair Bolsonaro, que conduziram o Brasil ao que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) classificou este mês de “maior colapso sanitário e hospitalar da história do país”. Intitulado “Linha do tempo da estratégia federal de disseminação da Covid-19: um ataque sem precedentes aos direitos humanos no Brasil”, o estudo coletou normas federais e estaduais relativas à Covid-19 junto à base de dados do projeto Direitos na Pandemia, à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU), além de documentos e discursos oficiais.

Faculdade de Saúde Pública da USP, São Paulo. Fonte: sites.usp.br

A linha do tempo elencou, mês a mês, atos normativos da União, atos de obstrução deliberada às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia e propaganda contra a saúde pública. O estudo buscou oferecer uma visão de conjunto a um processo fragmentado e, segundo os editores do boletim, propositadamente confuso.

De acordo com a pesquisa, o governo, voluntariamente, age contra a saúde pública por meio de um discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais; propaga notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias; enfraquece a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promove o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para contar o avanço da Covid-19. Em outras palavras, na contramão de líderes mundiais que vêm buscando soluções e medidas para atenuar a tragédia humanitária, no Brasil propaga-se o caos e a morte.

“Isto constitui uma violação sem precedentes do direito à vida e do direito à saúde dos brasileiros, sem que os gestores envolvidos sejam responsabilizados, ainda que instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União tenham, inúmeras vezes, apontado a inconformidade à ordem jurídica brasileira de condutas e de omissões conscientes e voluntárias de gestores federais”, afirmam as pesquisadoras no texto introdutório da linha do tempo.

Alguns destaques da linha do tempo

Março 2020 – Zero óbito

Nathana Reboucas (Unsplash)

Secretaria de Comunicação do governo federal lança campanha “Brasil não pode parar”, veiculando a informação de que “no mundo todo, são raros os casos de vítimas fatais do coronavírus entre jovens e adultos”, e incitando à desobediência das medidas quarentenárias: “Para trabalhadores autônomos, o Brasil não pode parar. Para ambulantes, engenheiros, feirantes, arquitetos, pedreiros, advogados, professores particulares e prestadores de serviço em geral, o Brasil não pode parar”. Material foi apagado depois de intenso contencioso judicial que chegou até o Supremo Tribunal Federal.

Abril 2020: 699 óbitos

“Parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, afirma Jair Bolsonaro em videoconferência com líderes religiosos em comemoração à Páscoa. Posta no twitter: “Há 40 dias venho falando do uso da hidroxicloroquina no tratamento do covid-19. Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz”.

Maio 2020: 3.877 óbitos

Jair Bolsonaro em discurso no Palácio do Planalto, local de trabalho do presidente, em Brasília, diz: “Lamento as mortes, mas é a realidade. Todo mundo vai morrer aqui. Não vai sobrar nenhum aqui. (…) E se morrer no meio do campo, urubu vai comer ainda. (…) Pra que levar o terror junto ao povo? Todo mundo vai morrer. Quem tiver uma idade avançada e for fraco, se contrair o vírus, vai ter dificuldade. Quem tem doenças, comorbidades, também vai ter dificuldades. Esse pessoal que tem que ser isolado pela família, o Estado não tem como zelar por todo mundo, não”. Protocolo do Ministério da Saúde recomenda uso de cloroquina em todos os casos de Covid-19, inclusive com sintomas leves, sendo o paciente obrigado a assinar um Termo de Ciência e Consentimento em que assume a responsabilidade pelo tratamento.

Junho 2020: 42.720 óbitos

Em frente ao Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da República, Brasília, Bolsonaro afirma: “Supremo Tribunal Federal decidiu que os governadores e prefeitos é que são responsáveis por essa política, inclusive isolamento. Agora está vindo uma onda de desemprego enorme aí. Informais e o pessoal formal também. Não queiram colocar no meu colo. Compete aos governadores a solução desse problema que está acontecendo quase no Brasil todo”.

Julho 2020: 71.469 óbitos

Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes define a resposta do governo federal à pandemia como genocídio: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. (…) É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso’.

A necessidade de “produzir esperança para corações aflitos” e uma suposta crescente demanda internacional foram apontadas como justificativas do Exército para pagar 167% a mais pelo principal insumo da cloroquina, de acordo com ofício enviado ao Tribunal de Contas da União, que investiga suspeita de superfaturamento na negociação. Na mesma data do ofício, o Brasil havia recebido a doação de 2 milhões de doses provenientes dos Estados Unidos.

“Todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do quê? Enfrenta. Lamento as mortes. Morre gente todo dia, de uma série de causas. É a vida”, afirma o presidente em meio a uma aglomeração em Bagé (RS).

Agosto 2020: 100.477 óbitos

Pfizer apresenta proposta de venda de vacinas, com possibilidade de entrega inicial em 20/12, ignorada pelo governo federal. Ministério da Saúde rejeita doação de, pelo menos, 20 mil kits de testes PCR para Covid-19 da empresa LG International, dois meses após a oferta.

Em cerimônia transmitida pela TV pública, Jair Bolsonaro discursa: “Junto com os meios que nós temos, temos como realmente dizer que fizemos o possível e o impossível para salvar vidas ao contrário daqueles que teimam em continuar na oposição, desde 2018”.

Setembro 2020: 131.210

Resolução de Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) flexibiliza ainda mais prescrição de ivermectina e nitazoxanida, dispensando a retenção de receita médica para venda em farmácias.

Outubro 2020: 150.198 óbitos

Jair Bolsonaro desautorizou a compra de 46 milhões de doses da Coronavac pelo Ministério da Saúde, e postou justificativa no twitter: “A vacina chinesa de João Doria (governador de São Paulo e maior adversário político). Está acabando a pandemia [no Brasil]. Acho que [o Dória] quer vacinar o pessoal na marra rapidinho porque vai acabar e daí ele fala: ‘acabou por causa da minha vacina’”.

Novembro 2020: 162.269 óbitos

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo informa que total de 6,86 milhões de testes para o diagnóstico do novo coronavírus comprados pelo MS perderia a validade entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021. Os exames RT-PCR estavam estocados num armazém do governo federal.

Em vídeo divulgado no YouTube, Bolsonaro afirma: “Essa história de segunda onda é verdade ou não? Ou é para destruir a economia de vez?” (…) “Aproveito a oportunidade, eleições municipais… Pessoal não dá muita bola para vereador e prefeito, mas é importante se preocupar e votar bem. O prefeito que fechou tudo, se achar que fez certo, reeleja ele. Se não, mude. (…) Setor turístico foi à lona, né? Quem é quem mandou fechar tudo, ficar em casa? Não fui eu né? Só para deixar claro, a destruição de emprego no Brasil quem fez?”.

Dezembro 2020: 181.123 óbitos

“Estamos vivendo um finalzinho de pandemia. (…) Não temos notícia dos nossos irmãos da África, abaixo do deserto do Saara, de grande quantidade de óbitos por Covid e todos esperavam justamente o contrário. A pessoa com alguma deficiência alimentar, pessoas mais pobres, fossem ser em boas e quantidade vitimadas. E não foi por quê? Eles tratam lá, muito, infelizmente, a malária. Então o elemento chegava com malária e com Covid-19, era tratado com hidroxicloroquina e ficava bom. Precisa ser muito inteligente para entender que a hidroxicloroquina serve para as duas coisas? Isso é coisa óbvia”, discursa o PR em Porto Alegre na inauguração de mais uma obra.

Janeiro 2021 – 209.296 óbitos

Decretos presidenciais subtraem R$ 9,1 bilhões dos investimentos em ciência, tecnologia e inovação neste ano, impedindo, entre outras coisas, que o Brasil desenvolva uma vacina contra a COVID-19, apesar de ter infraestrutura e recursos humanos suficientes. Comunidades acadêmica e empresarial mobilizam-se para derrubada dos vetos.

STF defere cautelar determinando ao Governo Federal que “promova imediatamente, todas as ações ao seu alcance para debelar a seríssima crise sanitária instalada em Manaus, capital do Amazonas, em especial suprindo os estabelecimentos de saúde locais de oxigênio e de outros insumos médico-hospitalares.

Postagens do PR e do Ministério da Saúde no Twitter foram marcadas pela plataforma como “potencialmente prejudiciais” e com “informações enganosas” ao incentivar o suposto “tratamento precoce” contra a covid-19.

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Cristiane d'Avila

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