Tratado da Carta da Energia corre o risco de extinção

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Está em marcha a retirada “concertada”, a nível europeu, do Tratado da Carta da Energia (TCE), assinado, em dezembro de 1994, em Lisboa, para proteção dos investimentos na área da energia – renovável e não renovável – para garantia do direito das empresas de processarem os estados signatários, quando adotarem políticas que ponham em causa a normal operação destas empresas e os respetivos investimentos.
O documento encontra-se desalinhado dos objetivos de transição para uma Europa mais verde e organizações ambientais, como a associação ambientalista Zero e a Troca (organização portuguesa por um comércio internacional justo), têm apelado à sua denúncia por parte dos 27 estados-membros da União Europeia (UE), aduzindo que o TCE protege cerca de 344 mil milhões de euros de investimentos em combustíveis fósseis cujas emissões são muito mais do que as possíveis para manter o aquecimento do planeta abaixo de 1,5°C (1,5 graus Celsius).

Um a um, os 27 estados-membros da UE têm mostrado vontade política de abandonar o TCE, pois as propostas de alteração às alíneas mais críticas, em negociação durante cinco anos, entre os 53 signatários, não foram suficientes para convencer vários elementos do bloco europeu a ficar, o que pode significar a morte desta iniciativa, de acordo com Agostinho Pereira de Miranda, sócio e fundador da Miranda & Associados e membro da equipa jurídica que aconselha o Secretariado da Carta da Energia, que opera em Bruxelas.
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Tudo começou no início dos anos 90, com o fim da Guerra Fria, que ofereceu uma oportunidade sem precedentes para superar as divisões económicas entre as nações de ambos os lados da chamada Cortina de Ferro, sendo o setor de energia a aposta mais interessante para a cooperação benéfica mutuamente codependente, devido à crescente demanda de energia da Europa, à vasta disponibilidade de recursos nos países pós-soviéticos e à reconhecida necessidade de se estabelecer uma base comumente aceite para a cooperação energética entre os estados da Euro-Ásia.

Assim, foi assinada, em Haia, a 17 de dezembro de 1991, declaração original da Carta Europeia da Energia, uma declaração política de princípios para a cooperação energética internacional em comércio, em trânsito e em investimento, juntamente com a intenção de negociar um Tratado juridicamente vinculativo, marcando o início do desenvolvimento do TCE. Um dos óbices era encontrar uma linguagem que assegurasse a soberania nacional sobre os recursos naturais e que consagrasse o princípio da cooperação internacional, para permitir o acesso externo a tais recursos. E os negociadores garantiram à Áustria e à Suíça que não arcariam com um ónus de trânsito indevido para recursos energéticos.

Em dezembro de 1994, foi assinado o TCE, com o protocolo de eficiência energética e de aspetos ambientais conexos, que entraram em vigor em abril de 1998. Foi, ainda, feita uma emenda às disposições conexas com o comércio, que reflete a mudança dos processos do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio para os da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Seguiu-se a Carta Internacional de Energia, uma declaração política não vinculativa que sustenta princípios-chave de cooperação internacional em energia. Reflete as mudanças na energia que surgiram desde o desenvolvimento do TCE original. A Carta Internacional da Energia foi assinada a 20 de maio de 2015, por 72 países mais a UE, a Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom) e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), numa conferência ministerial organizada pelo governo dos Países Baixos.
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A 7 de julho, a Comissão Europeia propôs que os 27 estados-membros denunciassem o CTE, de forma “coordenada e ordenada”, por considerar que o documento se manteve “praticamente inalterado, desde que foi acordado”, e por “já não ser compatível com a ambição reforçada da UE em matéria de clima, no âmbito do Pacto Ecológico Europeu e do Acordo de Paris”. Além disso, decidiu retirar a anterior proposta de modernização do documento, já “que não reuniu a maioria necessária entre os estados-membros”. A proposta previa, entre outros aspetos, o termo da proteção do investimento estrangeiro em combustíveis fósseis. A retirada desta proposta é tida por Agostinho Pereira de Miranda como o “aspeto mais negativo” do processo: “O Conselho [da União Europeia] entendeu que a versão modernizada do TCE não vai suficientemente longe, e eu antecipo que essa venha a ser a posição de quase todos os Estados-Membros”, defendeu.

Dez dias depois de a Comissão da UE ter anunciado a proposta, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática, anunciou, na Assembleia da República (AR), que Portugal já iniciara o processo de denúncia. E Filipe de Vasconcelos Fernandes, especialista em economia da energia, considerou que a resolução de litígios “terá sido uma das principais razões subjacentes à decisão do governo português, de iniciar a respetiva saída”, pois permite “o recurso a arbitragem, sem qualquer discriminação do vetor energético em causa”. “Algumas entidades, especialmente ONG [organizações não governamentais] ligadas à proteção do ambiente, reivindicavam, há muito, que tal levaria a um recurso predominante (e consequente proteção) às entidades do segmento não renovável, com o consequente prejuízo para a transição energética”, explicou.

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Também países como Espanha, os Países Baixos, a Polónia, a Alemanha e a França já tinham recusado, unilateralmente, manter-se como signatários, decisão que terá de ser formalmente notificada a Portugal, por ser o depositário do TCE.
O que está em causa é se a UE se retira de forma coordenada – única opção razoável – ou se permite que os estados que queiram permanecer o façam. Segundo a Reuters, é possível que países como o Chipre, a Hungria e a Eslováquia rejeitem a saída concertada e optem por ficar na versão atualizada. Ainda assim, com a maioria da UE de saída, o TCE, tido como “o grande motor da modernização”, não terá futuro, pois o Secretariado não terá financiamento.
Sem os 27, restariam 26 signatários do TCE, que, segundo a Zero (Associação Sistema Terrestre Sustentável) e a Troca (organização portuguesa por um comércio internacional justo), estão motivados pela perceção de que o tratado ajuda a atrair investimento no setor energético. “Trata-se, porém, de um argumento infundado, já que estudos demonstram que não há evidência de que o TCE e tratados semelhantes influenciem os fluxos de investimento”, vincaram.
O TCE é um acordo internacional, multilateral e juridicamente vinculativo, de promoção e proteção de investimentos no setor da energia, abrangendo todos os aspetos das atividades comerciais, incluindo comércio, transporte, investimentos e eficiência energética.
Assinado na capital portuguesa, após o fim da Guerra Fria, para reforçar a relação entre os setores energéticos dos estados do Bloco de Leste – com amplos recursos energéticos e a necessitar de investimento – e os da Europa Ocidental, que precisavam de diversificar as suas fontes de energia em mercados europeus e mundiais mais amplos, hoje não evidencia, segundo alguns analistas, razões para a sua legitimidade, em termos de facilitação do investimento ou da redução do custo da energia. Porém, outros pensam que Portugal beneficiou e continua a beneficiar das disposições favoráveis para os investidores portugueses que investiram em países que são partes do TCE, estendendo-se os benefícios aos programas de eficiência energética, de proteção do ambiente e a outros, “regularmente apoiados pelo Secretariado do TCE”.
Por outro lado, Portugal pode ser prejudicado, quando o investidor de país que não é membro do TCE constitui uma sociedade veículo num país que o é, com vista a beneficiar das garantias que o TCE oferece aos investimentos provindos deste último. É o que terá sucedido com a venda de participações do Estado da EDP e da REN a empresas chinesas.
Até 1 de maio de 2023, o Secretariado tinha em curso 158 casos de arbitragem referentes a investimento, instituídos ao abrigo do TCE, 59% dos quais se reportam a investimentos no setor das energias renováveis e 34% nas energias fósseis. Essa poderá ser “a razão principal que tem levado à denúncia do TCE por diferentes países.

O Estado português não tem histórico de disputas, havendo apenas um caso em curso que envolve uma empresa portuguesa, a Cavalum SGPS, que, em 2015, avançou com uma arbitragem contra Espanha (que tem em curso mais de 50 disputas), reclamando 59 milhões de euros e contestando a intervenção do país sobre as receitas das empresas de energias renováveis. Todavia, isso não quer dizer que Portugal não tenha estado prestes a acumular a sua lista de casos. Por exemplo, quando a Troika levou Portugal a cortar os subsídios às renováveis em 2012, ficou sujeito a processamento por via do TCE, como sucedeu em Espanha. Tal não aconteceu, porque Portugal terá preferido negociar sigilosamente e acordado com as produtoras energéticas.
Embora já tenha sido anunciada, uma saída formal do TCE não será fácil, nem imediata. Aliás, nos termos do documento, a denúncia só ficará concluída um ano mais tarde. Mesmo assim, os signatários que decidirem sair ficam expostos à cláusula de caducidade chamada “sunset clause”, que tem sido objeto de críticas, desde há muito. Com efeito, o artigo 47.º estipula que, “se um estado sair, as disposições do tratado continuarão a aplicar-se aos investimentos já em curso, durante um período de 20 anos a partir dessa data”.
Enquanto alguns analistas sustentam que a cláusula draconiana “viola os princípios e regras do direito internacional dos tratados”, nomeadamente das convenções de Viena, outros apontam que surgiu na ótica de proteção da confiança jurídica à data da realização dos investimentos.
Segundo os dados do TCE, a sunset clause foi ativada na Rússia e em Itália, depois da denúncia do tratado, a 30 de julho de 2009, e a 31 de dezembro de 2014, respetivamente.
Para proteger os estados-membros do risco de disputas, face a eventual retirada concertada, a Comissão Europeia sugeriu que, no âmbito desta cláusula, “sejam limitados” os futuros processos judiciais e que seja redigido um acordo entre os países, “já que 70% dos investimentos energéticos na UE são feitos por empresas oriundas da própria UE”, embora a cláusula de caducidade nunca se tenha aplicado nas relações intra-UE. “Esta é a opção menos dispendiosa e a única que permite à UE ser livre e coerente nas suas políticas em matéria de clima e [de] energia”, reforçam Susana Militão e Ana Moreno, da Zero e da Troca.

Enquanto Filipe de Vasconcelos Fernandes, sem margens para dúvidas, sustenta que é “altamente improvável” que a retirada do TCE possa contribuir para uma crise energética na UE, à semelhança daquela vivida em 2022, desencadeada pela guerra na Ucrânia, as representantes da Zero e da Troca, defendem que o abandono do tratado permitirá aos ex-signatários “conceber e ajustar as suas políticas energéticas às suas necessidades e políticas climáticas”, sem terem de negociar as suas decisões com investidores estrangeiros e sem temerem retaliações.
Todavia, a retirada europeia do TCE contribuirá para alguma instabilidade nos círculos dos investidores, especialmente financeiros, vindos de países que dele fazem parte. Haverá, certamente, nova crise energética, no curto prazo (um a dois anos). Porém, as razões principais serão mais geopolíticas do que financeiras ou económicas.
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Os países estão num dilema: os acordos sobre a ação climática implicam o quase abandono dos combustíveis fósseis e a aposta nas energias renováveis; porém, as guerras, o tempo e os custos das alternativas energéticas impõem a necessidade de recurso intensivo aos combustíveis fósseis, dificultando o ritmo da descarbonização e, mesmo, impedindo-a. Assim, ou acabam as guerras e se topam, a breve trecho, alternativas energéticas e de equipamentos ou o ambiente tem de esperar. Por onde anda a vontade política de sustentabilidade do planeta e de promoção do bem comum?
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17/08/2023