Três filmes com o Chile como pano de fundo

 Três filmes com o Chile como pano de fundo

No filme “El Conde”: Pinochet torna-se vampiro, numa alegoria incómoda em relação ao autoritarismo. (veja.abril.com.br)

Num espaço de meio ano, foram estreados publicamente, nos cinemas e nas plataformas, três filmes que fazem referência a acontecimentos relacionados com o Chile.

O primeiro a entrar nas plataformas foi “O Conde”(“El Conde”), de 2023, com realização de Pablo Larrain, é um filme chileno classificado como de humor ácido satírico, cujo guião foi escrito em colaboração com o dramaturgo Guilhermo Calderón.

(pt.wikipedia.org)

Resumindo o argumento e seguindo a Wikipédia, o ditador chileno Augusto Pinochet nunca morreu, pelo contrário, é um vampiro que, após 250 anos, decide morrer devido à sua complicada situação familiar e à desonra da sua figura.

Sempre fui um fã dos filmes de terror e lembro-me, com nostalgia, das realizações de classe B no cinema de Roger Corman e das produções da Hammer-Film (1934), que exploravam o universo gótico de personagens tão bizarras como Frankenstein, Drácula, a Múmia ou o Lobisomem.

Realmente, não acho muita graça ver o Pinochet transformado num vampiro. É verdade que há muito sangue, mesmo muito sangue, na personagem real. Sangue e sofrimento, muitos mortos, torturados, exiliados e ainda duas mil pessoas desaparecidas, das quais não há rasto, bem como sepultados ou atirados ao mar, em voos de aviões, clandestinamente.

Sim, vi o filme e tive um reencontro com um actor que conheci na minha infância e juventude. O protagonista deste filme é Jaime Vadell (1935) um dos mais prestigiados actores chilenos com mais de setenta anos de carreira e que continua no palco da representação. Ele foi um dos jovens actores – juntamente com outros, como Nelson Villagra, Delfina Guzmán e Roberto Navarrete –, que foi um pilar de sustento de uma das mais importantes companhias de teatro do Chile, nascida na minha cidade, Concepción: o Teatro da Universidade de Concepción (TUC), entidade profissional subsidiada pela própria Universidade de Concepción.

“El Realismo Socialista” (insider.pt)

Outro filme é “El Realismo Socialista”, fita documental realizada por Raúl Ruiz, antes do Golpe de Estado de 1973. Porém, o projecto foi interrompido pelo Golpe de Setembro de 1973. Foi, de acordo o articulista Paulo Portugal, no magazine Insider Film, “concebido como um misto entre documentário e ficção”, em que Raúl Ruiz procura comentar o debate político e social criado pelo percurso da Unidade Popular (UP) de Salvador Allende.

A Unidade Popular foi uma frente política ou movimento amplo que apoiou a candidatura de Allende. Com os acontecimentos do 11 de Setembro de 1973, e com o ataque das forças de Augusto Pinochet ao Palácio de La Moneda e à consequente morte de Allende, o projeto ficou adiado.

A versão apresentada no Festival de San Sebastian, em 2023, é de Valeria Sarmiento, a viúva e colaboradora de Ruiz, também realizadora, que o editou. Ainda que com algumas alterações, o filme mantém a ideia original de Raúl Ruiz.

(Direitos reservados)

O realizador chileno é sobejamente conhecido em Portugal, não só através da ligação que teve com o produtor Paulo Branco, como pela produção de várias realizações entre elas as últimas: “Os Mistérios de Lisboa” (em 2010), baseado no livro homónimo de Camilo Castelo Branco (um dos filmes portugueses mais premiados internacionalmente); e “As Linhas de Wellington”, filme que não chegou a terminar, mas que foi acabado na realização e que teve edição final da montagem pela sua mulher, Valeria Sarmiento.

No filme “Realismo Socialista”, o qual não vi, apenas tive oportunidade de ver o trailer cinematográfico. Volto a encontrar, pelas imagens de 1973, um jovem Jaime Vadell e Nelson Villagra, actores de referência na minha vida, como espectador.

O último filme que vou referir neste artigo é “La Sociedad de la Nieve”, fita espanhola, de 2023, realizada e escrita por Juan Antônio Bayona, baseada no livro homónimo de Pablo Vierci, que relata o acidente do voo 571 da Fuerza Aérea Uruguaya, na cordilheira dos Andes1, em 13 de Outubro de 1972.

(as.com)

O maior mérito deste filme é a sua narração, que dá voz não apenas aos sobreviventes, mas também aos que pereceram. Curiosa narrativa de um dos tripulantes que morreu passados alguns dias, mas que acompanhou, em parte, o calvário dos seus amigos e companheiros. Ele é a testemunha que, embora tenha perecido, ajuda a manter a gesta épica desta sobrevivência.

Então, eu tinha 20 anos e estávamos próximos do Natal. Passados 72 dias de angústia, para familiares e amigos, muitos deles estavam em Santiago com esperanças de resgate, quando um arriero (um camponês chileno) os encontrou junto de um rio. A partir de aí, foi uma série de movimentações de ajuda e de resgate até ao encontro final destes sobreviventes com os seus familiares.

Emotiva é, igualmente no filme, a recriação do momento em que um dos verdadeiros protagonistas encarna a personagem do seu pai na ocasião do reencontro com o filho.

Deixo aqui, como sugestão, a quem esteja interessado no tema, um caderno editado na época com fotografias originais deste sucesso. A reportagem, da autoria de Alfonso Alcalde, intitula-se “Vivir o morir.

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Nota:

1 – “O Vale das Lágrimas, cenário do acidente em que uma aeronave transportando 45 pessoas despencou no Chile e onde os sobreviventes permaneceram por semanas, ainda fascina turistas de todo o mundo. Mesmo 51 anos mais tarde, aventureiros se arriscam a explorar a Cordilheira dos Andes, tentando replicar o mesmo caminho que Roberto Canessa e Nando Parrado trilharam até encontrar ajuda. Em expedições ao longo de todos esses anos, amigos, familiares e turistas conseguiram trazer de volta alguns pertences dos passageiros, mas ainda há muitos itens enterrados no local.” (O Globo Agências Internacionais14/01/2024)

Destroços do avião que caiu nos Andes, em 1972. (Créditos fotográficos: Agência O Globo/Arquivo – oglobo.globo.com)

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07/03/2024

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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