Três mulheres exemplares

 Três mulheres exemplares

Beatriz Cal Brandão, Matilde Rosa Araújo e Virgínia Moura. (Direitos reservados)

Beatriz Cal Brandão, Matilde Rosa Araújo e Virgínia Moura são três mulheres da Resistência. Estiveram na primeira linha do combate contra a ditadura. Recordo-as, hoje, como acto de gratidão e de decência intelectual para com todos aqueles que, “em tempo de servidão”, resistiram e disseram não. A caminho dos 50 anos do “25 de Abril”, urge resgatar do cativeiro da memória as suas vidas exemplares. Só assim manteremos vivo “[…] O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”, nas palavras de Sophia de Mello Breyner Andersen, sobre o “25 de Abril”, poema incluído em O Nome das Coisas”.

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BEATRIZ CAL BRANDÃO (1914-2011) – Foi a primeira mulher portuguesa a licenciar-se em Engenharia Química. Directora técnica da Fábrica de Cerâmica das Devesas, em Vila Nova de Gaia.

Beatriz Magalhães Almeida Cal Brandão
nasceu no Porto, em 1914, e faleceu em
Gaia, no dia 20 de Agosto de 2011.
(mdm.org.pt)

Dona Beatriz, como carinhosamente era tratada, esteve presa inúmeras vezes. Foi na cadeia da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), no Porto, onde visitava a sua mãe, que conheceu Mário Cal Brandão, seu futuro marido e pai dos seus dois filhos, Isabel e Carlos Silo.

Solidária e fraterna, Dona Beatriz foi “mãe” de muitos jovens acossados, que acolhia na sua casa, mesmo em frente da esquadra da Polícia de Segurança Pública, na Avenida da República, em Vila Nova de Gaia.

Fundadora do Partido Socialista, tal como o seu marido, Beatriz Cal Brandão lutou pelos direitos dos mais desprotegidos e pelos direitos das mulheres.  Foi a primeira deputada a defender o direito à interrupção voluntária da gravidez. Morreu a 20 de Agosto de 2011, aos 97 anos.

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MATILDE ROSA ARAÚJO (1921-2010) – A escritora dedicou toda a sua vida à defesa dos direitos da criança e das mulheres. Através da sua escrita e da participação em actos públicos da Oposição Democrática.

Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa (em 1945), Matilde Rosa Araújo dedicou-se ao ensino e foi professora do primeiro Curso de Literatura para a Infância, na Escola do Magistério Primário de Lisboa, bem como do Ensino Técnico Profissional, em diversas cidades do país. A escritora e pedagoga considerava “a leitura uma troca de afectos” e a sua longa vida foi disso claro exemplo.

“A Garrana”, o seu primeiro livro, publicado em 1943, venceu o concurso “Procura-se um Novelista” de O Século, em cujo júri se encontrava Aquilino Ribeiro. Seguiu-se-lhe uma longa e premiada carreira literária. Nacional e internacional. Muitos dos seus livros dirigidos à infância foram ilustrados pelos artistas plásticos Maria Keil, Gémeo Luís e João Fazenda.

(leme.pt)

A defesa dos direitos da criança ocupou um lugar central na sua vida. Por isso, foi sócia fundadora do Comité Português da UNICEF e do Instituto de Apoio à Criança. Colaborou em diversos jornais como A Capital, O Comércio do Porto, República, Diário de Lisboa, Diário de Notícias e Jornal do Fundão; e nas revistas Távola Redonda, Graal, Árvore, Vértice, Seara Nova e Colóquio/Letras. Foi membro e dirigente da Sociedade Portuguesa de Escritores, actual Associação Portuguesa de Escritores. Morreu aos 89 anos, em 2010.

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VIRGÍNIA MOURA (1915-1998) – A senhora engenheira, como era tratada pelo povo do Porto, foi uma figura singular da oposição à ditadura fascista. Uma força da natureza. Virgínia Moura foi uma cidadã feita prisioneira por 15 vezes, nove vezes processada, três vezes condenada e agredida brutalmente pela polícia fascista, em actos públicos. Durante uma das prisões, os seus seios foram queimados pelos torcionários da PIDE.

A vida de Virgínia Moura foi um constante confronto com o fascismo. (aevm.edu.pt)

Virgínia Moura nasceu em S. Martinho de Conde (freguesia do concelho de Guimarães). Filha de uma professora primária, Virgínia foi rejeitada por ser filha de mãe solteira. Tal rejeição contribuiu para forjar o seu carácter revolucionário. Apesar disso e das dificuldades económicas, Virgínia Moura foi a segunda engenheira civil do país. Conheceu António Lobão Vital, nos anos 30 do século XX, no Porto. O arquitecto foi o companheiro da sua vida e com ele trocou ternas cartas de amor1.

(sigarra.up.pt)

Virgínia Moura e António Lobão Vital assumiram o confronto com o regime salazarista e tornaram-se numa referência moral para várias gerações de jovens, de trabalhadores e de intelectuais antifascistas.

Militante do Partido Comunista Português desde 1933, Virgínia Moura, logo nesse ano, participou na organização da secção portuguesa do Socorro Vermelho (Organização de Socorro aos Presos Políticos Portugueses e Espanhóis).

(pcp.pt)

Além da sua licenciatura em Engenharia Civil, Virgínia Moura cursou ainda Matemáticas e frequentou a Faculdade de Letras de Coimbra. O regime salazarista negou-lhe o acesso à Função Pública, pelo que, durante muitos anos, teve de dar explicações de Matemática e recorrer à elaboração de cálculos técnicos para colegas engenheiros, como forma de garantir a sua sobrevivência.

Virgínia Moura colaborou, ainda, em jornais: O Diabo, de Lisboa; O Pensamento, do Porto; e O Trabalho, de Viseu. Assinava os seus escritos como Maria Salema, o pseudónimo com que procurou iludir a polícia política e os censores. Contribuiu para promover a revista Sol Nascente e organizou conferências, com a participação de figuras destacadas da Cultura, como Maria Lamas, Teixeira de Pascoaes e Maria Isabel Aboim Inglês.

(etcetaljornal.pt)

A sua vida foi um confronto constante com o fascismo. Participou nos combates do MUD (Movimento de Unidade Democrática) e do Movimento Nacional Democrático; nas batalhas políticas em torno das “presidenciais” com as candidaturas de Norton de Matos, de Ruy Luís Gomes e de Humberto Delgado; nos congressos da Oposição Democrática de 1956, de 1969 e de 1973; e nas campanhas políticas realizadas nas eleições para a Assembleia Nacional, em 1969 e em 1973.

Virgínia Moura esteve em todas as pequenas ou grandes lutas contra a repressão, pela solidariedade com os presos políticos, pela melhoria das condições de vida do povo, pela igualdade e pela afirmação dos direitos das mulheres e da sua participação na vida política.

No dia 25 de Abril de 1974, ergueu a sua voz para exigir a libertação dos presos políticos junto da PIDE, no Porto. Até à sua morte, em 1998, continuou a sua luta na defesa e na consolidação do regime democrático.

Nota:

(Direitos reservados)

1 – “TEM CUIDADO, MEU AMOR – Cartas da prisão de Virgínia Moura e António Lobão Vital”, editado pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (em 2015), é o livro que resulta da organização e das notas de Manuela Espírito Santo, a partir do acervo doado por Virgínia Moura ao jornalista e escritor César Príncipe.

A correspondência entre Virgínia Moura e Lobão Vital “sai, é certo, dos cárceres de Caxias, Peniche, Santa Cruz do Bispo ou das celas da PIDE, mas antes de chegar ao destinatário os olhos de outrem a vasculham e um carimbo macula a caligrafia”. “O casal transforma essa ignomínia na sua maior força, nem por um momento o desespero transparece nesta correspondência […] Pelo contrário: são cartas plenas de confiança e dignidade, tratam de assuntos domésticos, de sonhos, projectos ao alcance de gente simples. Cartas de amor, também, de um jovem casal apaixonado, que na oferta de uma flor encontra motivo de júbilo e gratidão – surpreendentes algumas, inspiradoras todas”, escreve Manuela Espírito Santo, na apresentação da obra.

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Fonte consultada:

Antifascistas da Resistência

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20/07/2023

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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