Três poetas
Todos os da minha geração, quando crianças, ouvimos alguma vez este poema (fábula e/ou conto) escrito pelo poeta nicaraguense Rubén Darío (1867-1916). Havia várias razões, pela singularidade e beleza do poema e também pelo facto de Darío ter vivido no Chile (de 1886 a1889)
Na página electrónica da Biblioteca Nacional do Chile (Memoria Chilena), lemos que a “viagem de Rubén Darío ao Chile ocorreu num momento em que o nosso país atravessava um período de esplendor e verdadeiro florescimento cultural. ‘Vá para o Chile! O Chile é a glória…’, comentou o escritor salvadorenho Juan J. Cañas, motivando imediatamente a sua saída. O jovem poeta deixou a sua terra natal, a Nicarágua, em Maio de 1886, chegando a Valparaíso em 24 de Junho do mesmo ano. Ao chegar, foi recebido por Eduardo Poirier, que o acolheu oficialmente e o apresentou à intelectualidade chilena através de um artigo publicado no jornal El Mercurio.”
Os versos do poema inicial (ou excerto) fazem parte da história contada a uma menina, uma gentil princesa, caprichosa que tudo tem, mas que quer alcançar uma estrela. Diz-se que Rubén Darío teria escrito este poema para a filha de um amigo médico1.
Félix Rubén García Sarmiento, conhecido como Rubén Darío, foi um poeta nicaraguense, iniciador e máximo representante do Modernismo literário em língua espanhola. É, possivelmente, o poeta que tem tido uma maior e mais duradoura influência na poesia do século XX no âmbito hispânico. No meu tempo, quando tomei conhecimento deste poema, eu não sabia – mesmo nada – de modernismo(s). Talvez compreendesse a palavra, apenas associada a uma atitude em oposição ao gongorismo que predominava nas letras castelhanas. Mais tarde, no Chile e sob a influência de Darío, vão a manifestar-se os nossos modernistas em plena voz: Pablo Neruda, Pablo de Rokha (1894-1968), Vicente Huidobro, o peruano Cesar Vallejo (1892-1938) e, muito mais tarde, poetas como Raúl Zurita (1950) e o anti-poeta Nicanor Parra (1914-2018).
Motivada com a passagem dos 50 anos da morte de Pablo Neruda, a imprensa espanhola tem destacado o papel de Neruda junto da Geração de 27 e a sua acção no movimento intelectual poético que a Espanha vivia antes da Guerra Civil. São vários os artigos que salientam a influência que esse momento político da sociedade civil espanhola teve no poeta chileno e, também, como a sua poesia se converteu, cada vez mais, numa forma de resistência política e interventiva. No entanto, o poeta do amor – que se iniciara, em 1924, com o livro “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” – continuará, sempre, com a força e a intensidade desse sentimento, durante toda a vida. Mesmo no momento da sua morte, o amor ao seu povo e ao sofrimento chileno esteve presente.
A imprensa destaca o primeiro encontro de Pablo Neruda e de Federico García Lorca, em Buenos Aires, no ano de 1933. Os destinos de ambos os poetas cruzaram-se nesse momento e nessa cidade, cimentando uma grande amizade que se tornaria em cumplicidade literária, incluindo confidências e compromisso político.
Nesse ano (1933), Pablo Neruda chegava à capital argentina como adido do Consulado do Chile em Buenos Aires e, por sua vez, também Federico García Lorca ali ia acompanhar o sucesso da sua peça “Bodas de Sangre” (“Bodas de Sangue”), estreada pela companhia do Teatro Lola Membrives.
Passadas apenas duas semanas desse encontro, os dois poetas foram homenageados com um jantar no Pen Club. Então, Pablo Neruda e García Lorca decidem surpreender o público, redireccionando, sem avisar, a homenagem ao poeta nicaraguense Rubén Darío, “figura central da poesia de língua espanhola e que, ao mesmo tempo, lhes permitiu estabelecer uma raiz comum de ligação, cuja gravitação sobre a linguagem poética era inegável: o Modernismo.”
Num discurso a duas vozes, numa espécie de diálogo fragmentado, os dois poetas versaram sobre Rubén Darío, discurso que seria chamado “al alimón”2, como explica o próprio Neruda nas suas memórias.
No seu livro de memórias “Confesso que vivi” (1974), Pablo Neruda narra esta famosa cena:
Tínhamos preparado um discurso juntos. Você provavelmente não sabe o que essa palavra significa e eu também não sabia. Federico, sempre cheio de invenções e ideias, explicou-me: “Dois toureiros podem lutar contra o mesmo touro ao mesmo tempo e com uma só capa.” Esta é uma das provas mais perigosas da arte tauromáquica. É por isso que é visto muito raramente. Não mais que duas ou três vezes num século e só dois toureiros que sejam irmãos ou que, pelo menos, tenham sangue comum podem fazê-lo. Isso é o que se chama de tourada. E é isso que faremos num discurso.
E foi isso que fizemos, mas ninguém sabia. Quando nos levantámos para agradecer ao presidente do Pen Club a oferta do banquete, levantámo-nos ao mesmo tempo, como dois toureiros, para um único discurso. Como a comida era em mesas separadas, Federico ficava numa ponta e eu na outra, para que de um lado as pessoas me puxassem pelo paletó para que eu me sentasse acreditando que estava errado, e do outro faziam o mesmo com Federico.
Então começamos a falar ao mesmo tempo, eu dizendo “Senhoras” e ele continuando com “Senhores”, entrelaçando as nossas frases até ao final de forma que parecessem uma única unidade, até pararmos de falar. Esse discurso foi dedicado a Rubén Darío, porque tanto García Lorca como eu, sem sermos suspeitos de modernistas, celebramos Rubén Darío como um dos grandes criadores da linguagem poética em língua espanhola.
.
A Neruda e a Lorca, em sua homenagem e glória, erguemos o nosso copo!
Conheço este “diálogo” há muitos anos, dado a minha admiração por Lorca e por Neruda. Há bastante tempo, em Santiago do Chile, eu o meu amigo de Ourense Manolo Vidal, do teatro Rua Viva, replicámos este texto num serão de amigos. Ele interpretou o Lorca e eu o Neruda. Desse momento, não guardo instantes fotográficos, mas as memórias profundas de amizade e poesia.
Quando Neruda chegou a Madrid, Federico García Lorca foi buscá-lo a estação de Atocha, com um ramo de flores nas mãos, em memória da amizade de alguns anos antes3. E Pablo Neruda escreve, nas suas memórias: “García Lorca não parava de rir e de falar. Estava feliz. Esse era o seu hábito. A felicidade era a sua pele.” E da estação seguiram para o bairro de Argüelles, onde ficava aquela que seria a nova casa de Neruda, em Madrid. O que se segue é já conhecido: o assassinato de García Lorca e o poema de Neruda, recordando o seu amigo assassinado no mais trágico poema da sua obra.
Termino, assim, com alguns excertos do poema “Explico algunas cosas”, da autoria de Pablo Neruda:
Notas:
1 – Margarita de Bayle Sacasa de Pallais nasceu em León (na Nicarágua) em 1900. O seu pai era um médico de prestígio (foi também o médico de família de Rubén Darío) e sua mãe era filha do presidente do país, Roberto Sacasa y Sarriá, e irmã do posterior presidente, Juan Bautista Sacasa. Ela e a sua irmã estudaram na Bélgica e, quando a Primeira Guerra Mundial começou, foram enviadas para a Inglaterra e, mais tarde, para Filadélfia, tendo frequentado a Beechwood School, em Jenkintown.
Após sua partida, Darío, apesar da distância, manteve correspondência com escritores chilenos e argentinos – especialmente, com Luis Orrego Luco, a quem sempre expressou o desejo de retornar – e continuou a colaborar com jornais de Santiago do Chile e de Buenos Aires. No entanto, Dario não voltou ao Chile. E quando, uma vez, quis fazê-lo, por volta de 1912, a vida desviou o seu caminho. Ele estava perto da morte. E atraído por ela, aquele que a temia e a sentia tragicamente, foi para a sua terra natal, para morrer como uma criança.
2 – É uma forma de tourada em que dois toureiros atraem o touro com um único capote.
3 – Lembro ainda que Manuel Carlos Jorge Nascimento, português da ilha do Corvo (1885-1966), foi o primeiro editor de dois autores chilenos galardoados com o Prémio Nobel da Literatura: Gabriela Mistral (1945) e Pablo Neruda (1971). A vida deste açoriano no Chile, está documentada no filme “O Livreiro de Santiago”, realizado por José Medeiros. O meu amigo e jornalista Soares Novais também escreveu e publicou, no jornal sinalAberto, o artigo “Primeiro editor de Neruda foi O Livreiro de Santiago”».O meu avô materno Manuel Mercado e o meu pai, ambos livreiros, conheceram e relacionaram-se com esta curiosa personagem.
.
23/10/2023