Três retratos da Espanha franquista na RTP2
Três séries espanholas, recentemente passadas na RTP2, actualizam a sociedade na época franquista pós-guerra civil (1936-1939). Todas elas de uma reconstrução histórica bastante fiável, algo que a TVE já nos habitou e que demonstra a vitalidade neste tipo de realizações, que, não sendo elitistas, pretendem, pelo cuidado da sua construção, atingir o maior leque de espectadores.
A primeira série espanhola a passar foi “Duquesa de Alba”, em quatro episódios que relatavam a vida da herdeira de uma das casas aristocráticas mais importantes de Espanha. Cayetana Fitz-James Stuart, 18.ª Duquesa de Alba, (1926-2014), cujo nome tão extenso seria fastidioso aqui transcrever, pois, era portadora de mais de 40 títulos nobiliárquicos (ou de nobreza), sendo, entre eles, talvez o de mais prestígio o de Duquesa de Alba. Foi, de facto, a terceira mulher a deter o título ducal de Alba, por direito próprio, tendo sido a terceira mulher a dirigir a casa de Alba, nos seus mais de 500 anos de história.
Se grande parte da sua vida ficou ilustrada em capas e em jornais espanhóis de mexericos (imprensa cor-de-rosa) para entreter nas salas de espera de cabeleireiros, de diversos especialistas médicos e de médicos dentistas, a série ajuda a desvendar outros aspectos menos conhecidos da sua vida. Ficamos a saber que era admiradora da sua antepassada, Maria Cayetana de Silva (13.ª Duquesa de Alba), que fora prodigamente retratada pelo pintor Francisco de Goya, o qual – como se especula – teria sido o seu amante. Refira-se que a nova duquesa se encontra quase diariamente com a imagem eternizada por Goya.
Como nos lembra Ana Gomes Ferreira, no seu artigo no jornal Público (edição de 20 de Novembro de 2014), a “história dos Alba está ligada a Portugal através de Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, conhecido como o grã-duque, que venceu as tropas portuguesas na Batalha de Alcântara e deu a coroa portuguesa a Filipe de Espanha”. “O duque, recompensado com mais um título (12.º condestável de Portugal), morreria em Lisboa em dezembro de 1582”, adianta Ana Gomes Ferreira.
Cayetana casou três vezes, sendo o seu segundo esposo, Jesús Aguirre y Ortiz de Zárate, duque consorte de Alba. Editor literário, escritor, tradutor e académico espanhol, o qual foi director literário da Editora Taurus e, posteriormente, assumiu as funções de director geral de Música no Ministério de Cultura (de 1977 a1980). Jesús Aguirre Y Ortiz de Zárate foi, igualmente, comissário da Exposição Universal de Sevilha 1992, que decorreu na capital da Andaluzia e foi conhecida popularmente como “Expo’92”.
Cayetana teve uma infância marcada fortemente pela presença do seu pai, pois, a sua mãe morreu quando ela tinha, apenas, seis anos de idade. Foi sempre “senhora do seu nariz”, rebelde, gostava das sevilhanas e das músicas populares; ela própria estudou o flamenco (que envolve a música, a guitarra, o canto, a dança ou bailado/sapateado e a percussão) nos tablados das tabernas de Madrid.
Simpatizante de esquerda, Cayetana Fitz-James Stuart – como recorda a série espanhola (em quatro episódios), destacando vários momentos da sua intervenção social e política – participa nas manifestações após a morte de Francisco Franco, em 20 de Novembro de 1975, na capital madrilena, levando consigo bandeiras do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), nas primeiras eleições livres ou eleições gerais na Espanha, que decorreram a 15 de Junho de 1977. Tendo falecido a 20 de Novembro de 2014, as cinzas da duquesa de Alba repousam no Santuário da Irmandade de Los Gitanos.
“El Rey”: a serie “O Rei” é apresentada como uma minissérie espanhola (séries da TV) de três episódios sobre a vida de Don Juan Carlos I de Espanha, mas na realidade é sobre o seu pai – Don Juan –, o conde de Barcelona, João de Bourbon (1913–1993), que foi o pretendente ao trono espanhol, desde 1941 e até à sua renúncia, em 1977, a favor de seu filho. Terceiro filho e herdeiro designado do rei Afonso XIII da Espanha e da sua mulher, a princesa Vitória Eugénia de Battenberg. Com a restauração da monarquia espanhola, em 1975, o seu filho, Juan Carlos, tornou-se rei.
A série nos seus três episódios, relata-nos a luta que o pai de Juan Carlos realizou, a partir do exílio, para restaurar a monarquia em Espanha. O ódio que o general Franco tinha pelo conde de Barcelona e o seu menosprezo pelos monárquicos que giravam à sua volta está bem presente no argumento desta minissérie. Desde criança, a história de Juan Carlos de Bourbon, sobretudo, quando os pais o enviaram para estudar em Madrid, aos dez anos de idade, até se tornar rei da Espanha. Refira-se que Juan Carlos iniciou os seus estudos no Instituto San Sebastián e, em 1954, concluiu o bacharelato no Instituto San Isidro. É, de certa forma, a história de um prisioneiro e refém do ditador Francisco Franco e da sua mulher, Carmen Polo, a quem impõem amizades, relações socias e, até, o casamento com a futura rainha consorte de Espanha, Sofia da Grécia e Dinamarca.
A morte de Franco e também o Tejerazo (o frustrado golpe de Estado de 23 de Fevereiro de 1981, conhecido como 23-F, perpetrado por alguns militares, com o assalto ao Congresso dos Deputados por um numeroso grupo de guardas civis comandado pelo tenente-coronel Antonio Tejero) estão presentes nesta minissérie. O desenlace já o conhecemos: a morte do general Francisco Franco, o restabelecimento da democracia e a restauração da monarquia em Espanha, assim como, a saída, em 2014 (a 2 de Junho, quando foi anunciada a abdicação do trono, a qual foi oficializada a 19 de junho), pela “porta do cavalo” (não de “elefante”) de Juan Carlos I. Felipe VI, o terceiro filho de Juan Carlos I e da sua mulher, Sofia da Grécia e Dinamarca, é o actual ocupante do trono espanhol.
“O Que Escondiam Os Seus Olhos” é a terceira série (em quatro episódios) que, agora, considero. Baseada no romance homónimo da escritora Nieves Herrero, a série (estreada a 29 de Janeiro do corrente ano, na RTP2) recria a história do amor proibido entre Ramón Serrano Suñer e a marquesa de Llansol. Ramón Suñer (1901-2003) foi um advogado e político espanhol, seis vezes ministro dos primeiros governos franquistas, entre 1938 e 1942, tendo ocupando as pastas ministeriais do Interior, da Governação e dos Assuntos Exteriores.
A história narrada nesta série poderia ser trivial não fosse o caso de o amor proibido estar relacionado com o ministro dos Assuntos Exteriores, Serrano Suñer, que era (nem mais nem menos) cunhado de Franco, e com a marquesa de Llansol. Ela é Sonsoles de Icaza y León, casada com Francisco Díez de Rivera e musa inspiradora do estilista espanhol Cristóbal Balenciaga Eizaguirre, uma das mais distinguidas figuras da sociedade madrilena.
Estamos em Madrid, em plena Segunda Guerra Mundial, quando a capital espanhola, tal como Lisboa, era um local cheio de espiões britânicos e alemães. Então, os Britânicos tentavam, de qualquer forma, evitar o apoio de Espanha à Alemanha de Hitler e esta esperava que Franco entrasse na guerra, apoiando o Adolf Hitler.
Hitler e Franco encontraram-se apenas uma vez, em Hendaye, na França, a 23 de Outubro de 1940, para acertar os detalhes de uma aliança. Como nos lembra Margarida Mota, no jornal Expresso (edição de 3 de Novembro de 2009), “graças ao investigador espanhol Manuel Ros Agudo, confirma-se que, em Dezembro de 1940, Portugal esteve a um passo de ser invadido”. Escreve ainda Margarida Mota – com base num comentário do historiador Fernando Rosas, ao Expresso – que o documento, dos arquivos da Fundação Francisco Franco, descoberto em 2005, é “precioso”. Isso prova que os Espanhóis “não só tinham um plano de invasão, como o tencionavam executar à margem” dos Alemães.
No entanto, a actividade política de Franco centrou-se em Espanha, numa ambígua imparcialidade, temendo sempre as reacções de Inglaterra, a respeito de Gibraltar e dos Estados Unidos da América. É, precisamente, esta neutralidade que Suñer critica em Franco, tentando que este se junte à campanha de guerra. Porque não o consegue que isso suceda, Serrano Suñer acabará por se desligar do governo, mas manteve a sua fidelidade à Falange Espanhola (organização política de inspiração fascista, activa em 1933 e 1934).
Da relação entre Serrano e Sonsoles de Icaza y León, nasceria uma filha, Carmen, que – pela proximidade com a família de Zita Polo, irmã de Carmen Polo, mulher de Franco – acabará por se apaixonar pelo seu meio-irmão.
Descoberta a identidade do seu irmão, Carmen Díez de Rivera, passará por um convento de freiras, por missões na Costa do Marfim e, no seu regresso a Espanha, assumirá o seu papel na política, tornando-se na Musa de la Transición, como lhe chamou Francisco Umbral. O seu papel e posição ideológica foram muito importantes para Adolfo Suárez González (que foi o primeiro presidente democrático do governo de Espanha depois da ditadura do general Francisco Franco) e para o rei Juan Carlos I, na primeira etapa do seu reinado e no começo da democracia constitucional ou do período de transição da História contemporânea espanhola.
Carmen Díez de Rivera foi a primeira mulher a presidir ou a chefiar o gabinete de um governo, da Unión de Centro Democrático (UCD)1, entre 1976 e 1977. Politicamente, pertenceu ao Centro Democrático e Social (CDS) e ao PSOE, partido pelo qual foi deputada (membro) do Parlamento Europeu, de 1987 a 1999.
Entre os amigos de Ramón Suñer estão dois intelectuais falangistas, ambos caídos em desgraça no regime franquista: Antonio Tovar Llorente (1911-1985), filólogo, linguista e historiador; e Dionisio Ridruejo Jiménez (1912-1975), poeta e figura política associada ao movimento Geração de 36 e membro da Falange Espanhola, tendo sido co-autor da letra do hino falangista “Cara al Sol”.
Finalmente, é de destacar que, nas duas últimas séries aqui referidas, aparece a figura de Francisco Franco, pela qual não sinto qualquer simpatia, mas muito bem interpretado pelos actores Francisco Merino, em “O Rei”, e Francisco Gutierres. Também a mulher do general Franco, Carmen Polo, popularmente chamada La Collares (A Colares), pela sua afeição às joias. Entre muitas histórias, uma que não posso deixar de mencionar é a de que, segundo se conta, dona Carmen entrava nas lojas de ourives, escolhia e saía sem pagar; as contas deviam ir, mais tarde, para o Palácio Real de El Pardo, residência dos Francos!
Importa também relatar que foram subtraídas estátuas, as quais se encontram em poder dos Franco (herdeiros), pias baptismais de igrejas góticas transformadas em canteiros nas suas propriedades.
“El juez admite que las figuras del Maestro Mateo son del Ayuntamiento de Santiago, pero seguirán en poder de los Franco” (“O juiz admite que as figuras do Maestro Mateo pertencem à Prefeitura de Santiago, mas continuarão na posse da família Franco”), como intitula o jornal galego eldiario.es, o qual prossegue: “El tribunal desestima el recurso presentado por la capital gallega en una sentencia que confirma la propiedad municipal de las estatuas, pero no considera suficientemente acreditado que sean las que están en manos de la familia Franco” (“O tribunal nega provimento ao recurso interposto pela capital galega num acórdão que confirma a titularidade municipal das estátuas, mas não considera suficientemente credível que se encontrem nas mãos da família Franco”).
Por sua vez, a Sociedad Española de Radiodifusión (SER), numa peça assinada por Daniel Sousa, em 1 de Agosto de 2022, avança com o título: “De pila bautismal a macetero (robado) en Meirás: la batalla con los Franco continúa”. Ou seja: “Da pia batismal ao vaso (roubado) em Meirás: a batalha com os Francos continua”
Ao desenvolver a notícia, Daniel Sousa regista: “Un año después de la devolución del pazo de Meirás al patrimonio público, el edificio solamente se puede visitar desde el exterior y continua sin permitirse el acceso a las torres y a la capilla. Es más, los bienes del pazo, las reliquias, los cuadros, las esculturas y demás enseres que lo amueblan están inmersas en su propio proceso judicial.” O que, numa tradução directa, equivale a dizer: “Um ano após a devolução do Paço de Meirás ao património público, o edifício só pode ser visitado pelo exterior e o acesso às torres e à capela continua proibido. Além disso, os bens do paço, as relíquias, as pinturas, as esculturas e demais peças que o mobiliam estão imersos no seu próprio processo judicial.”
Afirma ainda Daniel Sousa: “Conocemos los casos de Frumales (Segovia) y Moraime (A Coruña), dos de los pueblos que Carmen Polo saqueó para “decorar” el pazo.” (“Conhecemos os casos de Frumales (Segóvia) e de Moraime (A Coruña), duas das povoações que Carmen Polo saqueou para ‘enfeitar’ o paço”
.
Nota:
1 – A Unión de Centro Democrático (UCD) foi uma coligação política e, mais tarde, um partido político espanhol de centro.
.
26/06/2023