ULS ou SNS?
Se não contarmos com o crónico problema das urgências, durante largos meses, a discussão no sector da saúde foi dominada pela extensão das unidades locais de saúde (ULS) a todo o território nacional. Discussão que foi mais um monólogo protagonizado pela equipa do Ministério da Saúde do que uma troca de argumentos entre vários pontos de vista e soluções, uma vez que o modelo é conhecido vai para 25 anos. O que acabou por ser publicado, com data de 7 de Novembro de 2023, afinal não continha nenhuma inovação organizacional, reduzia-se a umas quantas normas burocrático-administrativas.
Durante esse tempo, foi-nos dito que vinha aí uma revolução na saúde, que desta vez é que era. Foi-se ver e a revolução ficara com medo de sair à rua. É que não há nada, mesmo nada, na figura das ULS que não possa ser feito por um adequado sistema de comunicação e de informação. Não se vislumbra tratamento para a dor no “calcanhar de Aquiles” nem uma única norma que contribua para a melhoria do acesso dos doentes aos serviços de saúde. Tudo se resume a colocar sob a mesma gestão os actuais serviços públicos de saúde.
Uma decisão destas, o que está a fazer é atribuir quatro quintos de todos os recursos – profissionais, financeiros e tecnológicos – à doença, deixando o resto para a promoção da saúde e a prevenção da doença. Isto feito, por razões que têm centenas de anos, o que era Medicina Geral e Familiar acaba por ficar sob a alçada da lógica hospitalar; a medição de uma tensão arterial não tem o prestígio da transplantação de um rim, a prevenção da cárie dentária na população escolar fica a milhas de um enfarte agudo do miocárdio.
Embora tenha sido dito que era a melhoria do acesso e da eficiência que estavam em causa, quanto à primeira, os utentes e os doentes continuam sujeitos às mesmas barreiras para chegarem aos serviços. Já quanto à eficiência das ULS que existem, nada ainda demonstrou que assim seja com as actualmente existentes. Só se poderá, então, atribuir a uma espécie de oxímeromania colocar sob o mesmo comando duas entidades tão distintas como hospitais e unidades de saúde familiares (USF).
Foi para escapar a esta contradição que se criou a figura de Sistemas Locais de Saúde, inscritas na Base 2 da Lei de Bases da Saúde e no artigo 13º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS). É, principalmente, neste decreto-lei que está descrita a solução da contradição que as ULS constituem, como se regista: “1 – Os sistemas locais de saúde (SLS) são estruturas de participação e desenvolvimento da colaboração das instituições que, numa determinada área geográfica, realizam atividades que contribuem para a melhoria da saúde das populações e para a redução das desigualdades em saúde.
2 – Os SLS integram, por inerência, os estabelecimentos e serviços do SNS e demais instituições públicas com intervenção direta ou indireta na saúde, designadamente nas áreas da segurança social, da proteção civil e da educação, assim como os municípios, podendo ainda integrar outras instituições que operam no setor.”
É esta intersectorialidade que desfaz o oxímoro, uma vez que os SLS têm uma visão total da saúde individual e colectiva. São o dispositivo apto e capaz de dar respostas à promoção, à prevenção e ao diagnóstico e tratamento, visando que, no médio e longo prazo, a carga de doença da população não seja das maiores da Europa, expressa na baixa percentagem de anos de vida saudáveis.
É na cooperação entre os vários actores da comunidade que se encontra a chave para desbloquear uma discussão que ocorre em circuito fechado, entre profissionais da saúde e governantes, gerando entropia que chegue para dar e vender. Se o que está em causa é a saúde da população, seria do mais elementar bom senso experimentar incluir outros parceiros no sistema. Eles têm outros conhecimentos, outros recursos, outras experiências indispensáveis à saúde da comunidade.
Cada um por si, fazem o que podem, mas falta-lhes terem o mesmo comando, a mesma missão e o mesmo objectivo. Tal como ficámos, talvez lá se chegue, mas no dobro do tempo, ou mais. Trocar um SNS por 39 ULS e um director executivo é descer vários degraus na organização do serviço público de saúde. É insistir numa solução cujo lema poderia ser: “Enfarde, enfrasque-se, puxe do cigarro, sedentarize-se, que nós estamos cá para o tratar!”
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08/02/2024