ULS ou SNS? 

 ULS ou SNS? 

(sns.gov.pt)

Se não contarmos com o crónico problema das urgências, durante largos meses, a discussão no sector da saúde foi dominada pela extensão das unidades locais de saúde (ULS) a todo o território nacional. Discussão que foi mais um monólogo protagonizado pela equipa do Ministério da Saúde do que uma troca de argumentos entre vários pontos de vista e soluções, uma vez que o modelo é conhecido vai para 25 anos. O que acabou por ser publicado, com data de 7 de Novembro de 2023, afinal não continha nenhuma inovação organizacional, reduzia-se a umas quantas normas burocrático-administrativas.  

(Créditos fotográficos: Francisco Venâncio – Unsplash)

Durante esse tempo, foi-nos dito que vinha aí uma revolução na saúde, que desta vez é que era. Foi-se ver e a revolução ficara com medo de sair à rua. É que não há nada, mesmo nada, na figura das ULS que não possa ser feito por um adequado sistema de comunicação e de informação. Não se vislumbra tratamento para a dor no “calcanhar de Aquiles” nem uma única norma que contribua para a melhoria do acesso dos doentes aos serviços de saúde. Tudo se resume a colocar sob a mesma gestão os actuais serviços públicos de saúde.

Uma decisão destas, o que está a fazer é atribuir quatro quintos de todos os recursos – profissionais, financeiros e tecnológicos – à doença, deixando o resto para a promoção da saúde e a prevenção da doença. Isto feito, por razões que têm centenas de anos, o que era Medicina Geral e Familiar acaba por ficar sob a alçada da lógica hospitalar; a medição de uma tensão arterial não tem o prestígio da transplantação de um rim, a prevenção da cárie dentária na população escolar fica a milhas de um enfarte agudo do miocárdio.  

Embora tenha sido dito que era a melhoria do acesso e da eficiência que estavam em causa, quanto à primeira, os utentes e os doentes continuam sujeitos às mesmas barreiras para chegarem aos serviços. Já quanto à eficiência das ULS que existem, nada ainda demonstrou que assim seja com as actualmente existentes. Só se poderá, então, atribuir a uma espécie de oxímeromania colocar sob o mesmo comando duas entidades tão distintas como hospitais e unidades de saúde familiares (USF).

(Créditos fotográficos: Martha Dominguez de Gouveia – Unsplash)

Foi para escapar a esta contradição que se criou a figura de Sistemas Locais de Saúde, inscritas na Base 2 da Lei de Bases da Saúde e no artigo 13º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS). É, principalmente, neste decreto-lei que está descrita a solução da contradição que as ULS constituem, como se regista: “1 – Os sistemas locais de saúde (SLS) são estruturas de participação e desenvolvimento da colaboração das instituições que, numa determinada área geográfica, realizam atividades que contribuem para a melhoria da saúde das populações e para a redução das desigualdades em saúde.

2 – Os SLS integram, por inerência, os estabelecimentos e serviços do SNS e demais instituições públicas com intervenção direta ou indireta na saúde, designadamente nas áreas da segurança social, da proteção civil e da educação, assim como os municípios, podendo ainda integrar outras instituições que operam no setor.”

É esta intersectorialidade que desfaz o oxímoro, uma vez que os SLS têm uma visão total da saúde individual e colectiva. São o dispositivo apto e capaz de dar respostas à promoção, à prevenção e ao diagnóstico e tratamento, visando que, no médio e longo prazo, a carga de doença da população não seja das maiores da Europa, expressa na baixa percentagem de anos de vida saudáveis.

(Créditos fotográficos: Vladimir Soares – Unsplash)

É na cooperação entre os vários actores da comunidade que se encontra a chave para desbloquear uma discussão que ocorre em circuito fechado, entre profissionais da saúde e governantes, gerando entropia que chegue para dar e vender. Se o que está em causa é a saúde da população, seria do mais elementar bom senso experimentar incluir outros parceiros no sistema. Eles têm outros conhecimentos, outros recursos, outras experiências indispensáveis à saúde da comunidade.

Cada um por si, fazem o que podem, mas falta-lhes terem o mesmo comando, a mesma missão e o mesmo objectivo. Tal como ficámos, talvez lá se chegue, mas no dobro do tempo, ou mais. Trocar um SNS por 39 ULS e um director executivo é descer vários degraus na organização do serviço público de saúde. É insistir numa solução cujo lema poderia ser: “Enfarde, enfrasque-se, puxe do cigarro, sedentarize-se, que nós estamos cá para o tratar!” 

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08/02/2024

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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