Um dia como outro qualquer
O Natal na Beira Baixa, ali na raia, à beira da Extremadura espanhola, tem um encanto muito particular. Pelo menos, para quem o costuma viver por lá.
No dia 8 de Dezembro, começam os preparativos com a chegada dos grandes troncos, os “madeiros”, que hão-de arder na noite de Natal, em grandes fogueiras, em frente à igreja e a todas as capelas. Seguidos por ranchos de crianças, costumavam chegar do campo ao fim da manhã, em carros de bois enfeitados com ramos e flores, acompanhados de grupos de homens (os “festeiros”, responsáveis por cada capela, com os seus amigos e vizinhos), em grandes cantorias natalícias e com a muita alegria que alguns garrafões a pender das mãos ou dos carros justificavam.
Hoje, a tradição mantém-se, mas os carros de bois deram lugar aos tractores e as cantorias saem de colunas com música natalícia de origem norte-americana. Também o número de homens e de crianças diminuiu bastante, e, infelizmente, trata-se de uma diminuição proporcional à perda de habitantes na zona. Mas continuam a fazer-se filhós com antecedência, pois é preciso oferecer às famílias que estão de luto, que não as fazem. E, uns dias antes do grande dia, começa a chegar gente, os “de fora”, como se diz por lá, emigrados internos em Lisboa, ou externos, da França, da Alemanha ou da Suíça.
Apesar do frio rigoroso, há mais gente na rua, embora, nos últimos anos, também isso comece a notar-se cada vez menos. Os mais velhos vão desaparecendo e já não há ninguém para visitar.
Nos últimos anos, a Câmara põe até uns pequenos e parcos enfeites luminosos, sempre mais generosos no seu edifício, e costuma organizar um pequeno mercado de Natal durante as manhãs. À noite, vêem-se os filmes e as galas da TV espanhola.
Chegada a família, vai-se até ao outro lado da fronteira, onde o Natal é particularmente festivo. E mais longo, pois vai até aos Reis. E ainda mais gélido. Enregela-se e, no intervalo da compra dos turrónes, comem-se churros com chocolate quente e ouvem-se por todo o lado os villancicos, cantigas tradicionais de Natal.
Mas não são os passeios, nem as prendas, nem os repastos especiais, nem sequer “correr os madeiros” na noite de Natal, nem sequer o dia propriamente dito. É o ambiente de todos aqueles dias que vale a pena viver na Beira Baixa.
Mas o que fazer neste ano? Como vai ser viver o Natal? Como pensar sequer a possibilidade da alegria?
A verdade é que a alegria soa a culpa. Como se a vida continuasse estupidamente incólume. Como se a morte pudesse ser pacificamente aceitável. Assim, tão absurdo quanto as imagens de guerra numa cidade em escombros em que é possível ver passar uma mulher com os sacos das compras daquele dia, ou crianças a jogar à bola, ou umas lojas ainda abertas — como se fosse um dia como outro qualquer.
Com a covid, a enormidade do número de mortos parece tornar-se uma ficção. E o luto parece não existir. É como se estivéssemos entre escombros invisíveis. Com funerais invisíveis.
Quem nunca viveu a realidade da guerra não pode fazer comparações, claro. E acredito que seja muito diferente, mas, vivendo estes tempos de pandemia, é o mesmo vazio, a mesma ausência de sentimentos e emoções, a mesma ausência de um luto, que se sentem como semelhantes. A premência da vida a impor-se a cada momento, como se a morte fosse um mero detalhe.
E aqui estamos nós, a falar de Natal e a pensar em tempos de alegria. Convenhamos que, perante a realidade que vivemos, isso deveria parecer-nos inconcebível.
Pensar o Natal, hoje, só pode pois levar-nos ao espanto na imensa estranheza da sua possibilidade. Não viveremos o Natal especial deste ano. Mas decerto tampouco será possível vivê-lo como um dia como outro qualquer. Será um dia espantoso e estranho.
Graça Capinha (americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)