Um lugar para Tomé de Sousa
Um peregrino caminha lentamente com seu cajado e, por alguns segundos, impõe um novo elemento no cenário da praça deserta. Segue para o albergue destinado a pessoas como ele, determinadas e com um objetivo claro a cumprir: chegar à catedral de Santiago de Compostela, pouco mais de 200 quilômetros ao norte.
Turistas, em especial amantes da arte e da arquitetura, chegam timidamente para visitar, também ali, uma joia do norte de Portugal. A Igreja de São Pedro de Rates data do século XI e mantem-se de pé, com suas figuras esculpidas na pedra, animais míticos, sereias, figuras humanas disformes, máscaras, anjos e apóstolos. Do lado de fora, urnas tumulares em pedra, intactas.
A igreja dá nome à freguesia, vinculada ao concelho de Póvoa de Varzim, no Norte de Portugal, e onde nasceu Tomé de Sousa, cidadão do mais alto gabarito na história de Salvador, a capital da Bahia, e praticamente desconhecido dos conterrâneos. Em Portugal, os estudos no ensino médio e nas universidades estão concentrados na era medieval, nas relações dos reis com seus vizinhos europeus e na formação da fronteira, uma das mais antigas do mundo.
Sousa torna-se célebre ao ser designado pelo rei Dom João III para estrear no cargo de governador-geral das terras do Brasil, após o fracasso do projeto das capitanias hereditárias. Em 29 de março de 1549, desembarca na Baía de Todos-os-Santos e funda a cidade-fortaleza. Administra o País, redistribui funções, explora o interior, expulsa invasores, luta contra índios. Desempenha o serviço até 1553, quando retorna para casa. Duarte da Costa vai em seu lugar.
Paulo Sá Machado, comissário de eventos e cultura em Rates, quer resgatar toda essa memória e tornar a freguesia também conhecida por conta do filho ilustre. Não basta estar na rota de um dos caminhos de Santiago ou possuir um belo exemplar de um monumento românico medieval.
“Comecei a descobrir que ele foi uma pessoa importante e então a primeira preocupação foi procurar onde estavam os restos mortais”, conta. Encontra. Machado agora está no convento de Santo Antonio da Castanheira, em Vila Franca de Xira, a 40 quilômetros de Lisboa. “Informaram-me que pessoas de Salvador da Bahia já tinham tentado, veio cá uma delegação. Mas os donos disseram que não vão ceder. Querem transformar o local em um destino turístico. Na verdade, não há mais restos mortais. Só uma urna de metro e meio”.
A resposta negativa, considerada momentânea, impulsiona outros projetos. São iniciadas as tratativas para a montagem do museu em Rates, na casa onde nasceu Tomé de Sousa, naquela mesma praça do peregrino. Ao lado do imóvel, um pelourinho do século XVI, mandado construir pelo rei Dom Manuel I, o que garantia a autonomia administrativa de Concelho. O status é mantido até 1836, quando a condição se transfere para a Póvoa de Varzim.
A casa, modificada em 1755, deve abrigar toda a documentação possível referente ao administrador pioneiro do Brasil, de réplicas de bustos e estátuas, a papéis oficiais que demonstram a importância na expansão marítima portuguesa, tanto na América do Sul como na África. A coleta de dados está em curso. “Espero que, em um ano e meio, o museu já esteja funcionando com o todo o material recolhido”.
Atlântico – O marco inicial é a realização, em julho de 2019, do 1º Congresso Internacional Tomé de Sousa, em São Pedro de Rates. No auditório da Junta de Freguesia se encontram historiadores e pesquisadores de Portugal, Brasil, França e Togo. São discutidos temas como a relação entre o Governo Geral e os indígenas, as missões na África, a cartografia da época e as representações na filatelia.
Ao final do evento, todos se reúnem para a foto oficial na Praça Tomé de Sousa, única homenagem no lugar. Paulo Sá Machado planeja uma segunda edição, em 2020, em Salvador. Mas a pandemia não deixa. “Por tudo que construiu e simboliza tanto em São Pedro de Rates como em Salvador da Bahia, penso que devemos continuar a manter viva a memória de Tomé de Sousa”.
Enquanto isso, no outro lado do Atlântico, bem mais ao sul, lideranças soteropolitanas também se movem com o objetivo de levar a urna, a lápide, ou o que seja, para o que consideram o lugar de direito. Vai se somar a outras homenagens lá existentes. Quase um anônimo em Portugal, é um personagem ilustre no Brasil, e um herói na maior primeira capital do País. Afinal, Tomé de Sousa dá nome à primeira praça e à principal honraria concedida pela Câmara Municipal a pessoas que tenham prestado relevantes serviços a cidade, a Medalha Thomé de Souza. Sim, assim mesmo, com ’h’ e com ‘z’, grafia que ganhou além-mar. Figura obrigatória nos livros de História.
Especialista em Direito Eleitoral e estudioso das coisas da Bahia, o advogado Ademir Ismerim luta há quase dez anos para levar os restos mortais. Esteve em São Pedro de Rates e em Vila Franca de Xira. Manteve contato com os donos da propriedade. De volta, com a ajuda de um arquiteto, risca três esboços de memoriais, em locais do chamado Centro Histórico, para abrigar a relíquia.
Uma comissão, com a participação de representantes de órgãos estatais, estuda uma saída. Também são envolvidos nas tratativas vereadores e o presidente da Câmara de Salvador, a casa legislativa do município.
A ação conjunta cresce e chega a Brasília. O deputado federal Antonio Brito, baiano, coordenador do recém-criado grupo Parlamentar Brasil-Portugal, entra no time. Criado para promover troca de experiências, políticas e culturais, e fortalecer a cooperação internacional entre a Câmara dos Deputados e a Assembleia da República de Portugal, o grupo aciona o Ministério das Relações Exteriores do Brasil para apresentar o projeto.
Mas, seja qual for o hemisfério, lá está a pandemia. E a reunião marcada para meados de março com o embaixador Ernesto Rodrigues, é cancelada. “Vamos aguardar. Creio que o envolvimento do Estado é fundamental para alcançarmos o objetivo”, afirma o advogado.
Em meio à disputa, a professora Maria Hilda Baqueiro Paraíso, doutora em História Social e diretora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, lembra das cartas enviadas por Tomé de Sousa ao rei D. João III solicitando o retorno para Portugal. Ou seja, não queria mais estar ali, junto a índios e longe de casa. “Além disso, não vejo um hábito nosso em visitar museus ou sítios históricos em Salvador. Os brasileiros não têm o hábito de visitar e homenagear túmulos de personalidades”. “Mas ele é muito importante para a cidade. Até o brasão de Salvador é idealizado por ele”, rebate Ismerim.
A história bíblica de Noé inspira a bandeira da cidade, criada também pelo fundador. Em um fundo azul, a pomba branca traz no bico um ramo de oliva e a frase em latim: ‘Sic illa ad arcam reversa est’, ‘Assim ela retornou à arca’, em português. Teria encontrado terra firme após o Dilúvio. Veremos qual será o destino de Tomé de Sousa, o conquistador daquele Novo Mundo.