Um mundo de papel

 Um mundo de papel

(© Marco Dias Roque)

Confrontados com um mundo caótico e assustador, os seres humanos criaram mitos, rituais e, eventualmente, a religião. Se ainda hoje temos medo de relâmpagos, é fácil imaginar o terror das pessoas antes de a ciência conseguir explicar estes fenómenos. Contudo, vivemos num mundo tão moderno que esta comunhão entre o natural e o sobrenatural parece cada vez mais distante. Somos racionais, tudo tem uma explicação e a religião, mais do que uma necessidade, acaba por ser um conforto. Menos mitos, mais mundo real, certo? Errado.

(canaltech.com.br)

Vivemos no futuro, mas os nossos cérebros continuam a ser máquinas de gerar sentidos. Por isso, criámos uma sociedade baseada em ficções partilhadas, um “mundo de papel” que, a qualquer momento, pode ser levado pela brisa de uma mudança de perceção. Um exemplo: embora dominem o Mundo, as corporações não existem, não passam de um conceito que pode ser vendido, mudar de nome ou até de localização, para pagar menos impostos. A Amazon não compra nem vende nada, o Google (ou melhor, a empresa-mãe Alphabet) não faz conferências de imprensa e a Sonae não abre as portas, em cada dia, para vender comida. Quem reza no altar da Tesla (e afins) ou no Twitter presta vassalagem a uma ideia presente nas suas cabeças. O que existe, claro, são as pessoas e os serviços que as empresas prestam, coisas com um valor intrínseco. Contudo, quando a economia começa a falhar, o “bem” da empresa é mais importante do que as pessoas e os serviços. Uma vez que a empresa não existe, este bem é o lucro dos proprietários.

(psicologiamsn.com)

Outro exemplo é o de que, durante grande parte da História, o dinheiro nem existia e a economia funcionava através da troca de bens. Quando o Mundo começou a ficar mais ligado, o dinheiro generalizou-se, mas ainda ligado a algo real como a prata ou o ouro. Aliás, até 1971, o dólar em circulação continuava a depender de um padrão-ouro. Hoje, pode imprimir-se livremente. Na verdade, é algo que já nem se imprime, são números num ecrã. Conclusão: até o dinheiro só é precioso porque estamos, todos, de acordo de que tem valor.

Esta desconexão entre o valor real e a realidade tem consequências nefastas. Uma sociedade em que algo não precisa de ter valor intrínseco para ser comercializado criou um sistema de apostas global, cheio de números e de gráficos, que aceitamos com base na sua seriedade. No final das contas, o sistema financeiro é a base do mundo moderno. Assim, certamente, funciona bem. É pena que se baseie em empréstimos sobre empréstimos e em tentativas de criar dinheiro do ar, mediante instrumentos financeiros que uma pessoa normal nem entende. Ou seja, mitos em cima de mitos.

(Créditos fotográficos: Arnd Wiegmann / Reuters – jornaldenegocios.pt)

Olhemos para o Credit Suisse, um banco de 167 anos, que aguentou a crise de 2008, mas que, após anos de escândalos e sete dias de perdas massivas na bolsa, acabou vendido a um competidor suíço. Um colapso que se deve a uma questão de perceção. Nada real mudou no banco, mas, quando os investidores começaram a duvidar da integridade do banco, a valorização em bolsa começou a cair e os alarmes começaram a soar. Perante a impossibilidade de um empréstimo para continuar a operar (sim, os bancos também dependem de empréstimos), o governo suíço foi obrigado a intervir. No meio de tudo isto, parte do acordo de venda permite eliminar mais de 17 mil milhões de dólares em títulos AT1 bonds (Additional Tier 1 Bonds), que são instrumentos de dívida que outros bancos e investidores compram com a esperança de lucrar, no futuro. 17 mil milhões de dólares que se gastaram e, logo, desaparecem com uma assinatura num papel. Estamos perante um pequeno exemplo de um sistema construído em apostas futuras, ainda que desligado da realidade.

As corporações não existem, mas a ganância daqueles que trabalham nelas sim. Criam-se empresas para ser a face de um sistema que subsiste para enriquecer alguns. Quando caem essas fachadas, são as pessoas que pagam. Muitas das subidas do custo de vida não são mais do que decisões tomadas por determinados indivíduos ou grupos para assegurar lucros, dos quais vão receber uma ínfima parte. Apesar disso, alguns vestem a camisola e defendem os interesses independentemente do impacto. Resultado: vivemos num “mundo de papel”, onde a inflação se toma como um dado adquirido, embora, na realidade, seja mais influenciada por perceções do que uma ligação a um valor intrínseco. Se não fosse assim, os preços que os consumidores pagam por combustíveis seriam, na verdade, ajustados à matéria-prima disponível. E é por isso que os preços nos supermercados não descem. Sempre que um preço sobe pela “inflação”, serve para manter (ou subir) o lucro de uma empresa. Veremos o que passa com o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) a 0% (zero por cento) para alguns produtos ditos essenciais.

(zap.aeiou.pt)

Já não temos medo de relâmpagos, mas continuamos à mercê de deuses misteriosos que se escondem atrás de um sistema global. Prestamos a vassalagem às taxas de juro, compramos ações e títulos sem saber bem o que, realmente, está por trás. Quando corre tudo bem, o sistema é perfeito. Quando falha, a culpa é de outros fatores. Evoluímos, sim. Mas pouco. Trocámos os deuses da Natureza pelos do “mundo de papel”, onde se imprime o que for preciso, custe o que custar.

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06/04/2023

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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