Uma conversa para o primeiro dia do ano

 Uma conversa para o primeiro dia do ano

Mosteiro da Batalha (viajoteca.com)

Esta é mais uma conversa ficcionada com um erudito, que vos trago hoje (no primeiro dia de 2024), sobre temas ligados ao cristianismo, que só muito tarde aprendi e que sei que a maioria dos leitores terá interesse em conhecer.

– Comecemos, então, por dizer que as palavras sinónimas “mosteiro” e “monastério” radicam nos elementos gregos monós, que quer dizer sozinho, e terion, que alude ao lugar para fazer algo. Devo dizer que, originalmente, todos os monges cristãos eram eremitas, ou seja, homens que, usualmente por penitência, religiosidade, misantropia ou simples amor à Natureza, viviam sozinhos, num lugar isolado, longe do mundo, designado eremitério. Sabeis que houve um eremita que ficou na História do monaquismo cristão?

Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. (awm-portugal.com)

– Não sei. A minha ignorância é muita. Mas sei que a palavra “eremita” radica no grego erémos, que significa deserto, desabitado, étimo que serviu de raiz ao termo latino eremita, com o significado de “morador do deserto”, e à nossa palavra “ermo”, que quer dizer, deserto, no sentido de desabitado.

– Foi Santo Antão, o Anacoreta, o “Pai de Todos os Monges”. Muito jovem, abraçou o Evangelho como único caminho para a salvação, desfez-se de todos os seus bens, que distribuiu pelos pobres, partindo, depois, para o deserto, onde iniciou uma inspiradora vida monacal.

– Só sei que fui baptizado na igreja que lhe foi dedicada, em Évora.

– Também ficou conhecido por Santo Antão do Egipto, “Santo Antão, o Grande” e “Santo Antão, o Eremita”. Natural do Egipto, viveu entre os séculos III e IV, com grande destaque no contexto dos chamados Padres do Deserto, de que foi fundador, sendo lembrado pelo seu papel no desenvolvimento da vida monástica. A vida de Santo Antão e as suas tentações inspiraram numerosos artistas, como Hieronymus Bosch, Pieter Brueghel, Diego Velázquez, Gustave Flaubert, Francisco de Zurbarán e Salvador Dalí.

“As Tentações de Santo Antão”, de Bosch. (upload.wikimedia.org)

– Falai-me, se puderdes, de “As Tentações de Santo Antão”.

– Sei que mostram um mundo angustiante, entregue ao pecado, dominado por monstros e por forças demoníacas, face aos quais, a única esperança e salvação estavam em Cristo. A lição que delas tiramos é que só pela força da renúncia e fortemente apoiados na Fé nos podemos libertar-se dos demónios que nos atormentam.

– E os Padres do Deserto?

– Foram monges eremitas que viveram e exerceram a sua acção evangelizadora, sobretudo, no deserto da Nítria, a Oeste do delta do Nilo, entre Alexandria e o Cairo. Deste grande santo dizia-se que, por sua acção,o deserto se tinha tornado uma cidade”.

Bonita imagem!

“Santo Antão do Deserto e São Paulo de Tebas”, pintura de Diego
Velásquez (1638), actualmente no Museu do Prado. (pt.wikipedia.org)

– Os Padres do Deserto tiveram uma enorme influência nos primeiros tempos do cristianismo, que podemos dizer primitivo. Quer o monaquismo oriental, representado no Monte Athos, na Grécia, quer o ocidental – definido na “Regra de São Bento”, (em Latim, Regula Benedicti ou RB), escrita por Bento de Núrsia, no século VI, na abadia de Monte Cassino, em Itália – quer, em geral, todo o monaquismo medieval revelam acentuada inspiração nas práticas iniciadas no deserto. Crenças religiosas recentes como o metodismo saído da Igreja Anglicana inglesa, o evangelismo alemão e o pietismo do estado norte-americano da Pensilvânia, nascido na Igreja Luterana alemã, têm algumas das suas raízes nos Padres do Deserto. Também a Igreja Ortodoxa tem, nestes padres, as suas raízes.

– Depois deste interessante desvio, continuemos a conversa sobre mosteiros, conventos e abadias.

– Se nos reportarmos aos mosteiros cristãos ocidentais, podemos chamar-lhes conventos cartuxos, conventos de frades, abadias e priorados. Volto a dizer que um mosteiro é uma instituição edificada que alberga uma comunidade de monges ou de monjas, levando uma vida de oração e trabalho, em completo afastamento da sociedade.

Uma religiosa em clausura conventual. (pt.wikipedia.org)

–  A chamada clausura monástica.

– Sim. Via de regra, os mosteiros eram construídos na periferia das cidades. Num relance sobre a Historia do monaquismo, volto a lembrar que, originalmente, todos os monges cristãos começaram por ser eremitas que se reuniam, semanalmente, numa igreja para assistir à Santa Missa, onde ouviam a palavra de Jesus e recebiam a Comunhão.

– Creio que a palavra “igreja” quer dizer reunião!?

– Sim. Deriva do latim ecclesia que, por sua vez, deriva do grego ekklesia, que significa assembleia ou reunião de fiéis.

– Mas continuai, peço desculpa pela interrupção.

– Mais tarde, começaram a agrupar-se em pequenos recintos, chamados celas, anexas a uma igreja. Foi assim que em vários locais dos desertos do Egipto e de Judá, em Israel, surgiram as primeiras comunidades monásticas, sob a orientação de um Pai espiritual.

– E, daí, os nomes Pais do Deserto ou Padres do Deserto.

São Bento de Núrsia representado num vitral. (sainttherse.com –
historiamedieval.com)

– Exacto. São Bento de Núrsia, com a sua Regra, escrita na abadia de Monte Cassino, como disse atrás, influenciou marcadamente o modo de vida da Europa Ocidental, exercendo uma influência pautada por um estilo rígido, mas sem mortificações incompatíveis com a Fé. Desenvolveu, ainda, um espírito de equilíbrio e de discrição que atraiu um grande número de fiéis para a vida monástica.

No século XII, já era grande o número de mosteiros e de abadias neste lado da Europa. Lembro-me que, nesse período, surgiu a Ordem dos Cartuxos, fundada, em 1084, por Bruno de Colónia, na comuna francesa de Saint-Pierre-de-Chartreuse, no departamento de Isère, e a Ordem de Cister, em 1098, na região francesa da Borgonha, fundada por Roberto de Molesme que, com outros monges, abandonou a Ordem de Cluny, em fase de degradação, visando retomar a observância da Regra de São Bento de Núrsia.

La Grande Chartreuse (1084-1794; 1816-1903; reocupada em 1940). (chartreux.org)

– Se souberdes, dizei-me de onde vem os nomes “cartuxa” e “cartuxos”?

–  Vêm do nome Chartreuse, cuja tradução para Português deu Cartuxa.

– Bernardo de Claraval (1090-1153) foi o mais ilustre monge da Ordem de Cister.

– Foi um monge francês, fundador da abadia de Clairvaux, na Diocese de Langres, no Nordeste da França que, na primeira metade do século XII, promoveu importante reforma na Ordem de Cister e estabeleceu a regra monástica seguida pelos Cavaleiros Templários. Notabilizou-se no combate às heresias que grassavam no Sul da França e nos esforços de reconciliação da Igreja, durante o Cisma Papal de 1130, que só teve fim com a morte do antipapa Anacleto II, em 1138. Foi canonizado pelo Papa Alexandre III, em 1174, e proclamado Doutor da Igreja , em 1830, pelo Papa Pio VIII.

Abadia de Clairvaux, na Diocese de Langres, no Nordeste da França. (a12.com)

– Passando agora às abadias, devo dizer que todos os dias utilizamos palavras cujo significado e origem, verdadeiramente, desconhecemos. “Abadia” é uma delas,

– Abadia é uma comunidade conventual ou monástica da Igreja Católica, sob a tutela de um abade ou de uma abadessa, que a dirige com a dignidade espiritual de pai ou de mãe (madre) dessa comunidade. A palavra “abade” radica no Latim abbas, abbatis que, por sua vez, deriva do Aramaico, abba, que significa pai.

– Aramaico, julgo saber, é uma língua semítica, falada pelos Arameus, um povo da antiga região de Aram, no centro da Síria.

– Exacto. E, se é que não sabeis, deixai-me acrescentar que o qualificativo “semítico” alude aos Semitas, os povos que se diziam descendentes de Sem, um dos filhos de Noé, e que engloba não só os Hebreus, como os Assírios, os Arameus, os Fenícios e os Árabes.

Iluminura medieval mostrando a abadessa Hildegard von Bingen e o
monge Volmar. (pt.wikipedia.org)

– Muito obrigado. Peço desculpa pela interrupção. Continuai, pois.

– O título de abade teve a sua origem nos mosteiros da Síria, no século IV, tendo-se espalhado pelo Mediterrâneo Oriental e adoptado na generalidade da Europa para referir o governante de um dado mosteiro. No início, por influência de determinadas passagens da tradução latina da Bíblia, abade era empregue como título de respeito para qualquer monge mas rapidamente começou a ser utilizado exclusivamente para alguns superiores monásticos.

– Em Portugal, sempre foi um título considerado de respeito para qualquer monge.

– Sem dúvida. Durante a época visigótica, no território a que corresponde Portugal continental, o termo manteve o significado de paternidade espiritual, uso que se manteve mesmo depois da Reconquista.

01/01/2024

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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