Uma reflexão em torno do afecto
O “afecto”, palavra que fomos buscar ao latim “affectus”, afigura-se-me como um sentimento marcado por uma natural, espontânea e notada dose de ternura na relação com o outro, que tanto pode ser uma pessoa, um animal ou, mesmo, um objecto.
No seu último livro (Sentir & Saber – A Caminho da Consciência, editado em Novembro do ano passado, pelo Círculo de Leitores), António Damásio, veio reforçar uma convicção muito enraizada em mim, segundo a qual o afecto é fundamental em todos os domínios da nossa vida em sociedade, com destaque na relação ensino/aprendizagem.
Este distinto neurocientista diz que “as capacidades afectivas são fundamentais porque são as primeiras”. São, diz ele, “os alicerces da nossa mente, daquilo que é o nosso ser”. E acrescenta que “é sobre essas capacidades que se vão colocar as capacidades cognitivas”.
Para este professor da Universidade do Sul da Califórnia, a conhecidíssima frase “Penso, logo existo”, do filósofo Descartes, é profundamente errónea, porque nasce da ideia, para ele errada, de que aquilo que é mais valorizável no ser humano é o pensamento cognitivo puro. Contrapõe a seguir, dizendo que o alicerce da nossa mente é tudo o que tem a ver com o nosso próprio corpo, com a vida que está a manifestar-se em nós, e cujo estado (bom ou mau) é transmitido através do sentimento. Para Damásio, “as capacidades afe[c]tivas têm sido sistematicamente menosprezadas pela nossa cultura, pelo melhor da nossa cultura, não apenas hoje, mas na cultura filosófica tradicional”. Há 25 anos, num seu outro livro – O Erro de Descartes –, António Damásio já denunciava “a sobrevalorização das capacidades cognitivas puras, em detrimento das capacidades afectivas”.
Para o autor de Sentir & Saber, o fundamental é que se perceba que aquilo que é ser humano não é redutível aos aspectos cognitivos da mente. Pelo contrário. Para ele é preciso alicerçar essa mente do raciocínio puro no que é fisiológico, naquilo que é a vida, naquilo que é o corpo. Não é dizer que somos só corpo, isso seria um disparate. O que não se pode é tentar entender a mente humana sem aí incluir o papel do corpo e da fisiologia, nem a expressão dessa fisiologia nos sentimentos.
Para Damásio, “aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afecto. A vários níveis”.
Estas sábias palavras de quem, há décadas, estuda a anatomia do cérebro e a sua relação com os fenómenos da consciência, vêm ao encontro de uma convicção muito enraizada em mim e que posso expressar, servindo-me, em parte, das suas palavras, dizendo que aquilo que foi e ainda é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com a mistura do que é afectivo com o que é puramente racional. Damásio deu-me, pois, a imensa alegria de confirmar esta muito minha convicção.
Tenho plena consciência de que todos os êxitos no muito trabalho que desenvolvi, para além do empenho e da persistência que neles coloquei, foram ditados, sobretudo, pela afectividade que sempre caracterizaram o meu relacionamento com as pessoas, quaisquer que sejam as suas posições no tecido social, dos presidentes da República ao mais humilde dos cidadãos, dos ministros aos contínuos dos ministérios, dos patrões aos assalariados, dos generais e almirantes aos soldados e marinheiros.
19/05/2022