União em torno dos princípios e valores do Jornalismo
Decorreu, em Lisboa, no Cinema São Jorge, de 18 a 21 de janeiro, o 5.º Congresso dos Jornalistas Portugueses (5.º CJ), em que a discussão de todos os assuntos considerados relevantes pelos jornalistas gravitou, não por acaso, em torno do lema “Jornalismo, Sempre”.
O 5.º CJ foi iniciativa aberta a todos os jornalistas, promovida por três instituições – o Sindicato dos Jornalistas (SJ), o Clube de Jornalistas (CJ) e a Casa da Imprensa (CI) – tendo sido a sua organização da responsabilidade de um órgão independente, designado Comissão Organizadora (CO), que integrava a Comissão Executiva e o Secretariado. Nele participaram jornalistas, estudantes, professores, observadores e convidados. Os trabalhos foram múltiplos e as modalidades diversas.
Como o lema deixa entrever, o 5.º CJ ocorreu numa altura em que um grupo relevante no jornalismo português está em crise laboral e de identidade do proprietário, assim como os profissionais do jornalismo em geral veem a sua atividade social, política e economicamente condicionada. Muitas vezes, o jornalismo de investigação e o simples escrutínio jornalístico aos poderes não são bem aceites e pode haver a tentação de a entidade proprietária ter mais interesse na venda de jornais e nas audiências radiofónicas ou televisivas do que na verdade informativa que espelhe a realidade, como é apanágio do jornalista profissional.
Por outro lado, o deserto jornalístico no território nacional impede que as populações tenham acesso aos eventuais desvios do exercício do poder local e regional.
Além disso, a tendencial concentração dos meios de comunicação social em poucos grandes grupos económicos e um certo monolitismo na produção jornalística põem em causa o pluralismo democrático, que se pretende na política, na sociedade e, obviamente, na comunicação social.
Tudo isto emerge de uma democracia que está longe de consolidação e de irreversibilidade. Talvez por isso, a “Resolução final do 5.º Congresso dos Jornalistas”, aprovada, proclamada e aclamada, por unanimidade, pelos congressistas, a 21 de janeiro, terá aberto com a frase sentenciosa: “O atual estado de emergência do jornalismo nacional convoca todos.”
Do que passou para o exterior da aula magna do 5.º CJ, ganharam vulto o discurso do Presidente da República (PR) e a decisão de greve geral dos profissionais em momento a determinar pelas estruturas sindicais, de acordo com o mandato do Congresso.
O discurso do PR fez uma boa resenha da evolução do Jornalismo e dos meios que o serviram ao longo do tempo – desde as formas de composição, de paginação e de impressão. Depois, assumiu as dores dos profissionais, de que destaco: a necessidade da justa compensação do trabalho, contra a magreza salarial; a precariedade, as condições subumanas de trabalho; os riscos inerentes à profissão; e a necessidade da intervenção humana, mesmo que as novas tecnologias, incluindo a inteligência artificial (IA), sejam facilitadoras. Efetivamente, “não há jornalismo sem jornalistas”.
A greve geral, um direito que assiste aos profissionais, tem plena justificação no momento, a ver se as entidades proprietárias, os decisores políticos e a sociedade civil acordam para a realidade difícil que envolve os profissionais. O único fator de dúvida da oportunidade é a possibilidade de contribuir para agravar a crise que o país atravessa, mercê da atual situação política.
***
Como é natural, não participei no 5.º CJ, mas fui lendo e ouvindo as intervenções, à medida que iam sendo disponibilizadas. Não me é possível fazer referência a cada uma. Porém como, a meu ver, a “Resolução final do 5.º Congresso dos Jornalistas” espelha bastante os assuntos abordados, passo a um comentário, necessariamente não exaustivo.
O estado de emergência do Jornalismo “convoca todos a empenharem-se na busca de soluções e na união em torno dos princípios e valores que regem a profissão”. Como a crise é geral e multifacetada, a solução não é única e não é prerrogativa de uma pessoa ou de um grupo, antes mobiliza todos: jornalistas, empresas de comunicação social, clientes e decisores políticos.
A multiforme precariedade laboral, que “tem vindo a acentuar-se”, compromete a independência de jornalistas e a liberdade de informar. A insegurança e a instabilidade expõem os profissionais à cedência a práticas violadoras da ética. É iniquo aduzir a paixão dos jornalistas pela profissão para os explorar no seu trabalho. Por isso, urge reforçar a solidariedade entre jornalistas e mostrar a sua fidelidade ao compromisso com os cidadãos. “Fidelidade” e “compromisso” são palavras-chave!
As condições de trabalho desumanas, que levam jornalistas a situações de exaustão emocional e de sofrimento ético e os expõem a patologias em saúde mental e a esgotamento, suscitam a condenação dos profissionais. E postulam que as empresas garantam o acompanhamento psicológico necessário. O empregador é responsável pela saúde dos seus trabalhadores!
O financiamento sustentável do Jornalismo requer medidas imediatas e soluções estruturais, pois trata-se de um instrumento fundamental para a democracia, tão ameaçada em toda a parte. Urge refletir sobre a matéria, sem excluir o apoio estatal, desde que salvaguarde a autonomia e a independência dos jornalistas, já que o Jornalismo é “um bem público”.
Devem diversificar-se as fontes de financiamento, mantendo os tradicionais (assinatura, publicidade, venda em banca…) e avançando com outras, por exemplo, motivando empresas, fundações e associações para um mecenatismo jornalístico.
O financiamento das empresas jornalísticas pelo Estado deve obedecer a critérios rigorosos e transparentes, seja pelo engrossamento do pagamento de serviço público, seja pela oferta de publicidade institucional, seja pela subvenção, seja pelo financiamento de projetos inovadores promovidos por jornalistas, que, no dizer dos congressistas, “constituem um sinal de esperança”.
Nunca o jornalista pode ser agente de desinformação, porque esta “corrói os fundamentos da vida em sociedade e alimenta os populismos”, os quais não precisam do jornalismo para se instalarem.
Os jornalistas devem comprometer-se com a democracia e não tratar por igual a verdade e a mentira. Com efeito, a verdade objetiva é a base da informação, mas há gente mais comprometida com a mentira do que com a verdade. Neste âmbito, o jornalista deve distinguir bem a notícia e a reportagem da crónica, do artigo de opinião ou do comentário. E deve abster-se do comentário tendencioso e da tentação de, na entrevista, condicionar as respostas do entrevistado.
A tecnologia e a reconfiguração das práticas profissionais, que não alteram os princípios éticos e deontológicos, colocam novos desafios, sendo fundamental diferenciar o Jornalismo de outras formas de comunicação e preservar a sua missão em democracia. De facto, as novas tecnologias são elementos facilitadores, mas não substituem o ser humano, que deve estar de sobreaviso, para quando as tecnologias entram em deficiência.
A IA não pode substituir o trabalho de jornalistas, devendo ser enquadrada no benefício que traz à profissão e ser tema de ações de formação em todas as redações. Mais uma vez, se alerta para a necessidade de o homem, que sente e pensa, não ser substituído pelo mecanismo.
Contra qualquer tipo de censura e de autocensura (políticas, sociais e económicas), os jornalistas devem agir, sempre, de acordo com a sua consciência e, com o consequente sentido de responsabilidade, quanto ao impacto da produção noticiosa em cidadãos mais vulneráveis.
Deve ser objeto de reflexão aprofundada, para incorporar novas realidades e para garantir o pluralismo e a diversidade, o quadro legal que regula a profissão – em especial as leis de Imprensa, de Televisão e de Rádio, o Estatuto do Jornalista e o Regulamento da Carteira Profissional. Na verdade, tudo muda (há novas realidades e desafios) e, por vezes, as leis e os regulamentos mantêm-se, supinamente, na resistência à mudança. Por outro lado, os jornalistas devem reforçar a autorregulação, em defesa de um Jornalismo de qualidade e eticamente responsável, e fortalecer os conselhos de redação.
Carece de séria reflexão o quadro de intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em especial no quadro da transparência da propriedade dos órgãos de comunicação. O que está a acontecer num importante grupo de comunicação social indicia que a ERC deixa passar os problemas. Isto, para não falar em intervenções inadequadas na produção jornalística ou nas questões internas cujos efeitos, por vezes, se refletem no exterior.
O vigente modelo de formação e de ensino “deve adaptar-se às novas práticas profissionais, incentivar o cruzamento de diversas competências e estimular o espírito crítico dos futuros jornalistas, de forma a serem capazes de desempenhar o papel de mediadores”. E, como é insuficiente a formação académica (embora necessária), o Congresso sustenta que “as redações têm um papel fundamental no processo de formação profissional dos jovens jornalistas”. É a formação em contexto de trabalho que produz outra capacitação. Além disso, como a formação ao longo da vida é indispensável, numa sociedade em mudança permanente, as empresas não podem furtar-se a cumprir o que a lei estabelece neste campo.
O Congresso pede, como “garantia do direito à informação, no presente e no futuro”, a regulação legal da “preservação dos arquivos, físicos e digitais, dos órgãos de comunicação social”. De facto, a consulta de arquivo pode trazer luz para a compreensão das realidades presentes e acautelar situações indesejáveis no futuro. E a informação, que nunca é desligada do “antes”, pode também condicionar o “depois”.
É gritante realidade a desertificação noticiosa do país. E a sua inversão, mais do que necessária, “passa pelo reforço dos apoios públicos, pela capacitação dos jornalistas que trabalham fora de Lisboa e do Porto e pelo combate à promiscuidade crescente entre órgãos de comunicação social e autarquias”. Na verdade, é inadmissível a concorrência (para não dizer monopólio) informativa e promocional que os serviços de comunicação ou de relações públicas das autarquias prestam. É o desvio da informação isenta, é a prestação tendenciosa, sem contraditório, em prol dos objetivos do poder instalado, a que se adicionam os custos a expensas do erário municipal
Dizem os congressistas – e bem – que, “neste domínio, os órgãos de comunicação social públicos têm responsabilidades acrescidas”.
O Congresso evidencia dois princípios a ter em conta, que não sei como foram desenvolvidos no grande areópago jornalístico: “a literacia mediática deve ser transversal a toda a sociedade e merecer apoio estatal”; e “o Jornalismo não pode hipotecar o património fundamental da credibilidade”. Enquanto o segundo é de profundo e aceite pendor epistémico, pelo que não lhe faço comentário especial (a credibilidade é a base de toda a atividade social), o segundo leva-me a concluir que as escolas de todos os níveis de ensino devem – e já o fazem – apostar na formação comunicacional e na ousadia interventiva, de modo que os cidadãos cooperem com os jornalistas, na informação, na investigação e no escrutínio aos poderes instituídos e aos poderes candidatos (estes metem-nos pelos olhos e pelos ouvidos a banha da cobra). É bom que preocupação formativa se estenda às associações e aos agentes culturais.
Por fim, é de salientar: “O V Congresso dos Jornalistas sensibiliza a sociedade para a importância vital do Jornalismo, enquanto instrumento de aprofundamento da democracia e exige aos partidos políticos concorrentes às próximas eleições legislativas que contemplem, nos seus programas, compromissos efetivos de proteção do Jornalismo enquanto bem público.”
Lamento, mas duvido de que este quesito entre, a sério, no leilão de promessas, por dificilmente entrar no mecanismo da caça ao voto. Estamos a ser pasto de um caciquismo cego e indomável. Porém, o jornalista deve dar voz aos cidadãos e ser também a voz deles.
.
29/01/2024