Vacinem-me!
No mundo contemporâneo, as vacinas são a forma tradicional de prevenção das doenças, a que posteriormente se juntou o exame periódico de saúde, a detecção dos riscos para a saúde, através da correcção de condutas de saúde (como o tabagismo, o abuso do álcool e da cafeína, atendendo aos cuidados em nutrição, à dieta para evitar a obesidade, bem como à prevenção de acidentes, à prática do exercício físico, à evicção de doenças infecciosas e à redução do stress), tendo em conta ainda as determinantes familiares e as determinantes ambientais e comunitárias (saneamento, substâncias químicas e factores socio-económicos).
Com a evolução, a prevenção das doenças passou a fazer-se também através de rastreios, da medicina prospectiva e estimativa do risco para a saúde (saúde ocupacional, por exemplo), da educação sanitária, da saúde do viajante e da actuação médica e sanitária em grupos vulneráveis ou grupos de risco (saúde materno-infantil, saúde sexual e reprodutiva, diabetes, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, violência familiar, vítimas de tráfico de seres humanos, etc.).
Com esta panóplia de intervenções em saúde, que não devem ser desvalorizadas, pois incidem sobre toda a população (no caso de Portugal, através do Serviço Nacional de Saúde, com dificuldades, mas ainda assim garante do acesso universal das populações), a vacinação não perdeu acuidade (pelo contrário), continuando a ciência a investir com competência e seriedade (independentemente dos interesses económicos), inclusive em engenharia genética, de menor risco que a utilização de vírus vivos atenuados em vacinação.
E quando a ciência se vai desenvolvendo para combate a novas doenças (a que se vê e a que não se vê, mas na qual se trabalha intensamente), eis que surge a contestação, a dúvida e a oposição, por vezes, lançadas por profissionais que confundem um debate em congresso e a correspondente linguagem técnica numa ciência não exacta, como é a medicina, com a intervenção de “especialistas” na comunicação social de massas (que tem ouvintes de literacia diversa). Utilizam terminologia confusa, com o sentido de ser diferente (até por incremento da auto-estima ou da futura candidatura política), e acrescentando algo que os mass media procuram incessantemente, muitas vezes sem rigor, de forma especulativa, desinserida do contexto e de audiência fácil.
Toda a informação científica disponível é útil para promover a literacia das populações, apresentada por quem sabe, por quem tenha método expositivo pedagógico e por quem não tenha outros interesses. Mas é duvidoso (no mínimo) que seja útil entrevistar quem passa, quem tem medo patológico, quem julga que sabe porque ouviu ou leu (fake news, com frequência), ou quem transfere os seus infortúnios particulares para um problema comum.
A vacinação em crianças não tem sido posta em causa noutras doenças a evitar (ainda que alguns efeitos secundários sejam comuns), sendo até mais valorizada do que a vacinação nos adultos, o que leva a elevadas taxas de vacinação em crianças e menos elevadas taxas em adultos, esquecendo-se que o tétano, as pneumonias e a gripe podem matar, também na idade adulta.
Porquê a não adesão (parcial) à vacina anti-COVID em crianças, da mesma forma que nos adultos, quando se aceita que os nascituros ainda estão na maternidade e já estão a ser vacinados (e muito bem)? Encontramos algumas razões, que não são imputáveis aos riscos de qualquer vacina nem à incompreensão dos benefícios para a criança, para a família e para a vida em comum.
A dúvida é legítima. A dúvida é inerente a todos os actos que praticamos, aos argumentos contraditórios de tudo o que se faz ou não se faz, à ciência que não é matemática, ao acaso que, por vezes, traduz felicidade (com o Euromilhões); ou que significa azar (com os acidentes), à vida feliz ou infeliz, à vida que se aproveita ou se desperdiça.
A concepção que o adulto tem, obviamente pelo afecto e pela responsabilidade de cuidar da criança a seu cargo, pode confundir tais manifestações, como se a criança fosse uma propriedade, sobre a qual o adulto exerce o seu direito, embora ignorando os riscos para a comunidade (particularmente, aquela em que a criança se insere, como a escola), com a sua atitude negacionista em relação a um acto elementar em saúde individual e colectiva, que beneficiaria a criança e a sociedade.
A comunicação social, para o bem e para o mal, esgota os temas da actualidade efémera, leva à exaustão o debate mais ou menos qualificado, dá expressão à opinião serena ou perturbada, à malícia de forma ínvia ou enviesada, à suspeição baseada em indícios ou em julgamentos populares, à denúncia fundamentada ou populista.
A família, como sistema, é um conjunto de elementos em interacção dinâmica, sendo o estado de cada um, ou do todo, determinado pelo de cada um dos outros (citando Miller), constituindo a familisofia e a famililogia, a par de outras ciências sociais e humanas, em equilíbrio multidisciplinar e multiprofissional, contributos para o bem-estar do paciente, do doente e da família.
Na caracterização das famílias, segundo a relação parental, há as que são superprotectoras, com preocupação excessiva em proteger os filhos/as, (pais supercontroladores), não permitindo o desenvolvimento e autonomia dos filhos (como se estivessem numa redoma), em que os pais atrasam o seu amadurecimento, tornando-os extremamente dependentes das suas decisões não partilhadas.
Num plano de cuidados destas famílias, dever-se-á reduzir os riscos do controleirismo das crianças em situações adversas e a sua incapacidade de reacção, assim como demonstrar aos pais a evidência de resultados contraditórios aos seus objectivos traçados, propondo-lhes a regulação do afecto parental.
Há também famílias centradas nos filhos, em que os pais vivem para e pelos seus filhos, não sabendo enfrentar os seus próprios conflitos conjugais, que desvalorizam, sem avaliação e ajustamento (em vez de procurarem resolver os problemas). Nessas circunstâncias, centram a atenção em temas e gestos relacionados com os filhos (o que pode tornar-se o seu único assunto de conversa e interesse); e procuram insistentemente a companhia dos filhos, alternativa essencial para a sua satisfação e motivo de vida.
Num plano de cuidados destas famílias, deverão os pais diferenciar a relação conjugal e a parental e as suas regras e fronteiras. Terão de centrar e de dinamizar os recursos próprios dos cônjuges (inexplorados?) e, também, centrar a responsabilidade filial de ambos e de cada um.
Quando estão vacinados em Portugal 90% dos adultos (o que é excelente), qual é a (falta de) razão para que algumas grávidas não estejam vacinadas? O que levou pais a não permitiram que fossem vacinadas cerca de 50% das crianças, seus filhos? Não sei porquê. Não sei ainda, mas sei que a razão, mesmo quando vencida, não deixa de ser razão.
As dúvidas, a comunicação social e a família fazem parte do nosso dia-a-dia. Tal como a juventude clama pelo combate às alterações climáticas e à defesa da vida saudável, estou certo que as crianças, com formação adquirida em saúde, em cidadania e em solidariedade, em geral, clamariam para os seus pais: “Vacinem-me!”
18/01/2022