Vamos piquenicar?

 Vamos piquenicar?

(Créditos fotográficos: Ralf Roletschek – pt.wikipedia.org)

O arado rasga a pele dos campos para as sementeiras de Outubro. O cavador de enxada em riste curva-se para a terra no declive dos montes.

Irrequietude de alvéolas, de rabi-ruivos e estrelinhas-reais, voos repentinos, graciosos, nupciais. O papa-figo. Olá, passarinho bonito, olá!, não fujas tão asinha, passarinho. Deixa admirar a tua penugem amarela e negra que mais embeleza o abrir das videiras nodosas. Voa, voa papa-figo até partires para o Sul, lá pelo termo do Verão, deixando no ar rastos de suave vivência.

Piquenicar à beira dos moinhos movidos a água.

As morujes no ribeiro murmurante, os regatos de águas corrediças, os peixes-cabeçudos saltaricando. Sobrevoam libélulas, rolas e chaspins; os rouxinóis nos ramos reverdecidos. A pega-azul e a poupa a nidificar com ares de rainha-mãe. O melro, choc-choc empoleirado no sabugueiro, atento e atencioso para os seus amores.

O flautear do cuco-rabilongo chegado da África Central e da Índia Meridional, “se o cuco não vier em Março ou Abril ou foi morto ou não quer cá vir”; “aonde o cuco canta, lá janta”; “ó cuco ramalheiro, quantos anos me dás de solteiro?” E ele a responder conforme sabe e pode, por uma vez que seja arvorado em oráculo. A todo o momento, o espreguiçar do jacinto-das-searas, o voo das borboletas amarelas, brancas e de outras cores em visita às puras flores, beijinhos aqui, ali, amaciando os lábios da manhã.

O reflorescimento das tílias e frésias, o doce cheiro dos poejos. Na melodia da Ribeirinha, entre fragões, os líquenes à flor da água. Com o aproximar dos passos, rãs assustadiças saltam para os charcos, plás!

Apetece-me deitar o corpo no lençol daquelas pedras polidas, ouvir o respirar dos campos, a brisa nas asas das abelhas obreiras valsando em volta das corolas. Ferroada? Moeda negra contra o inchaço, escutei dizer na Rua da Botica.

Sobre tufos de erva fresca espreitam pampilhos. Sangram vívidas papoilas entre o delírio de outras flores e de outros odores. Às distâncias depuradas, à nítida luminosidade, as divinas montanhas, os caminhos vicinais a perder de vista, caminhos cascalhentos rumo ao declive do Vale do Côa, vale sagrado.

(Direitos reservados)

Por todo o liteiro, espalham-se saladas, pastéis de carne de massa tenra, bolinhos de bacalhau, punheta de bacalhau, arrozinho de espigos e ovos verdes. Ainda a contento do palato, nacos de presunto, rodelas de chouriça da talha de azeite, mãos-cheias de azeitonas. De Barca de Alva vieram peixinhos do rio, fritos e de escabeche, molho antiquíssimo à base de azeite, vinagre, ébola e louro.

A brancura dos guardanapos desdobrados, o faiscar dos talheres. A culminar a funçanata, taliscas de queijo, catraços de pão estaladiço. Cerejas carnudas colhidas pelo pintar da manhã fazem companhia a nêsperas e à compota de pêssego-maracotão dos finais de Setembro, o mês de as compotas de ginjas, maçãs, pêras e de amoras-silvestres besuntarem o bandulho dos frascos. Lambarices a mais? Pr´ó diabo, diabetes!

O rosto sanguíneo do vinho a prenunciar nobre robustez das castas: touriga nacional, touriga franca, tinta roriz, tinta barroca.

À vossa!

Tardes mimosas.

Raparigos de calções e sandálias com os joelhos esfacelados pelo traquinar brincam no secular pontão de lajes. Fingem caçar coelhos e lebres por ali em abundância, e acabam por se entreterem no jogo das caçadinhas. Haviam descoberto a eira de única e descomunal pedra. Depois, um abrigo feito de grandes fragas. Pelas costas, nave de penedos, dando-se pressa em imaginar à entrada daquele colossal afloramento rochoso homens rudes cobertos de peles de animais que, absortos, perscrutam a linha do horizonte. Depois, desenham animais na face das pedras.

À volta dos açafates e condessinhas, toca de comer e beber, ó guerreiros das comilanças! Mesmo por debaixo de um céu despido de nuvens, de um sol a dar banho de prata às oliveiras centenárias. Olhai, o sol lambendo agora limões, espargos, rosmaninho-lilás, giesteira-branca. O sol afagando as flores amarelas da giesta-piorneira, a madressilva-caprina com ar de menina. Eis o momento supremo de sonecar sobre a relva, braços cruzados na nuca e ouvir espirais de música elevando-se na brisa, cântico da ribeira a correr, cintilante…

Arpejos nos ninhos.

A ovelha que vai parir.

Alarido de beleza orgânica.

O mundo à mão de semear.

Aos que me tomarem por lírico, rogo esta praga: engordem com noticiários, análises e comentários dos papagaios emplumados.

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09/06/2021

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Alfredo Mendes

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