Vazios de poder
A política é um “mal necessário”. Muitos sonham com um mundo sem impostos, sem regulações que limitem a vida e os negócios, liberdade sem responsabilidade social. Pensamentos fáceis de ter quando, como qualquer pessoa ao balcão de um café nos dirá, “os políticos são uns corruptos”. Prova disso é a avalancha de escândalos em Portugal, desde a demissão do primeiro-ministro, devido a acusações de corrupção contra membros do seu gabinete, até alegações relacionadas com o envolvimento do Presidente da República em ‘cunhas’ para facilitar serviços de saúde a cidadãs estrangeiras. Perante casos assim, porque é que aceitamos viver com este sistema político?
Na minha opinião, porque, se este sistema não existisse, viveríamos sem proteção social e sem poder confiar em ninguém fora das nossas relações próximas. Uma pessoa seria como uma ilha e seria impossível ter uma vida pouco melhor do que a de um eremita. Ao crescermos numa sociedade que nos protege desde que nascemos, é fácil esquecer esta realidade e assumir que a autossuficiência está ao virar da esquina. Há pessoas que dizem: “Ponho umas placas solares e planto a minha comida, não preciso de mais nada nem ninguém.” Todavia, não perguntam de onde vêm as placas solares, as sementes, os medicamentos ou outros produtos e serviços.
Esquecem que, sem um sistema centralizado, a sociedade viveria num estado primitivo, em que a lei do mais forte impediria o desenvolvimento. Mesmo com as suas imperfeições, a democracia é o sistema que permite desenvolver a sociedade como um todo, sem deixar ninguém para trás. O problema é que a democracia sem participação ativa nem interesse do público não existe. Quanto mais nos desligarmos da política – e estes escândalos levam muito a isso –, pior funcionará o sistema.
Assim, o vácuo presente na hora de procurar alternativas políticas em situações como a de Portugal – e que muito contribui para a desconexão entre o povo e os governantes – parece-me mais problemático do que os casos em si. Se pessoas em posições de poder cometem ilegalidades – e temos de assumir que sim, já que se estas acusações não estão baseadas em provas sólidas, os problemas do sistema judicial são maiores que os da política –, deveriam existir personalidades prontas para assumir essas posições e defender o bem-estar das populações e do país. Contudo, quando António Costa pediu a sua demissão, não se viu nenhuma alternativa, atendendo ao carisma necessário para unir os Portugueses à volta de um governo.
Este é um problema comum a todo o espectro político. No “arco da governação”, o Partido Socialista parece composto por pragmáticos afastados dos ideais socialistas. Os anos de oposição do Partido Social Democrata demonstraram pouca capacidade para apresentar novas ideias. Os restantes partidos “tradicionais” (Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português e o Centro Democrático Social – Partido Popular) parecem definhar e representar cada vez menos os cidadãos. Os partidos mais recentes esgotam-se em ideias vazias que, apenas, representam os grandes interesses económicos ou, pior, trocam ideias de governação sólidas por afirmações populistas e xenófobas, mais interessados em chegar ao poder do que fazer algo bom com ele.
Uma pessoa deve estar na política para melhorar o Mundo, bem como para representar todos os cidadãos e implementar políticas que também ajudem as gerações futuras. Contudo, este não é o caminho nem a motivação para chegar a posições de poder. Parte deste vazio de poder vem do facto de a governação se ter tornado um domínio (quase) exclusivo de políticos profissionais. Protogovernantes afastados das necessidades reais, que vêm das juventudes dos partidos, motivados pelo desejo de se aproximarem do poder. Começam jovens, espalhando panfletos e candidatando-se a associações de estudantes na escola secundária, começam a fazer caciquismo na universidade – “Já votou, colega?” – e, depois, começam a ser assessores, até chegarem a deputados na Assembleia da República ou secretários de Estado adjuntos. Uns anos depois, chegam a ministros (ou a outras posições de relevo e de poder). Neste contexto, observamos que muita da falta de confiança dos Portugueses na política vem desta representação limitada do povo, resultante de pessoas que se dedicaram a generalizar, em vez de entenderem os cidadãos, assumindo que merecem estar no poder sem terem contribuído com algo benéfico para a sociedade.
Outro problema associado a este vazio de poder prende-se com os fantasmas do passado, que se negam a descansar. Logo após as notícias da demissão do primeiro-ministro, vários comentadores começaram a tentar ressuscitar políticos como Aníbal Cavaco Silva ou Pedro Passos Coelho, esquecendo os motivos pelos quais desapareceram da esfera pública. Bem sei que Portugal nunca recuperou do desaparecimento do D. Sebastião e que ainda olhamos para as manhãs de nevoeiro com saudosismo, mas os nossos olhos deveriam antever um futuro vibrante e não se fixarem num passado bafiento.
Um outro exemplo deste vácuo é a utilização de espaços de comentário político como trampolins para o poder. Funcionou com Marcelo Rebelo de Sousa, mas precisamos mesmo de Luís Marques Mendes como Presidente da República? Se tivermos de escolher alguém do prime time com esse apelido, o meu voto vai para o Fernando Mendes.
No meio deste vazio, convém recordar que a responsabilidade por um sistema político saudável não recai somente sobre os políticos, mas também em cada cidadão. Sim, a política é um “mal necessário”, mas a apatia relativamente à governação cria um terreno fértil para interesses mesquinhos prevalecerem. O desencanto com o sistema político mostra o afastamento entre a população e os seus representantes, mas a solução está em cada um de nós. Temos de encontrar maneira de abandonarmos a apatia cívica, sendo críticos e responsabilizando quem escolhemos para nos governar. Senão, nada mudará.
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Nota do Director:
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07/12/2023