Velhos

 Velhos

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Carta à atenção dos mais novos que, se a vida o permitir, hão-de ser velhos

Velho, sem mais rodeios, é, na realidade, o que eu sou. Eufemisticamente, tratam-nos, a mim e aos que vivemos esta última etapa da vida, por idosos, ou seja, aqueles que têm muita idade ou muitos anos vividos. Sem apelo nem agravo, todos envelhecemos. Como em tudo no Universo que conhecemos, das estrelas aos planetas, das rochas aos seres vivos, o tempo faz os seus estragos.

Se é certo que o futuro dos velhos é minguado e a encurtar, veloz, a cada dia que passa, o seu passado é extenso e repleto de experiências vividas e presenciadas. Os velhos, a quem o cérebro vai resistindo à erosão do tempo, nos quais me julgo incluído, são valiosos arquivos de conhecimentos que se perdem com o seu desaparecimento. E, quando falo de conhecimento, falo de toda a espécie de sabedoria, seja ela qual for, da mais simples à mais complexa e erudita.

No Oriente – nomeadamente, na China e no Japão –, os velhos são considerados fontes de experiência e de saber e, como tal, escutados com atenção e respeito; e tratados com a deferência que lhes é devida. Via de regra, numa qualquer reunião familiar ou de amigos, a presença de um velho é salientada com palavras e gestos de simpatia. Fruto de uma cultura e de uma educação milenares, essas sociedades, referenciam, glorificam e cuidam bem dos seus velhos. Os japoneses, por tradição, ouvem os seus velhos antes de tomarem decisões suficientemente importantes, à semelhança do que acontece em muitas sociedades indígenas, em África e nas Américas.

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No que concerne à minha experiência pessoal, constato que em Portugal não se aproveita a sabedoria dos velhos que, em muitos casos, é considerável e teria imensa utilidade, se fosse inteligentemente aproveitada.

Jubilei-me aos 70 anos, cheio de energia e de experiência. Consegui, após requerimentos dirigidos ao primeiro-ministro de então, permanecer, por mais dois anos, na Direcção do Museu Nacional de História Natural (na Universidade de Lisboa), findos os quais, sem apelo nem agravo, fui “posto na prateleira”, como gosto de dizer. Na realidade, o Estado dá-nos uma pensão (e, neste aspecto, considero-me um privilegiado, relativamente à maioria dos meus concidadãos) e concede, a cada um de nós, o direito de fazermos o que melhor entendermos nas 24 horas dos dias de vida que nos restam. Dias de vida que o Serviço Nacional de Saúde, honra lhe seja feita, tem vindo a prolongar.

(© MoneyLab)

Um parêntese para dizer que a esperança média de vida dos portugueses, estimada, há dois anos, era de cerca de 80 anos para os homens e de 83 para as mulheres.

A verdade é que, falando por mim, praticamente, nunca ninguém da universidade que servi durante 42 anos, seja das faculdades (de Ciências e de Letras) seja do referido museu, me chamou, depois da aposentação, há duas décadas, para ajudar a resolver um problema ou para dar um parecer, um aconselhamento, uma colaboração. Tudo o que, desde então, ali fiz – e foi muito – resultou de um voluntariado de iniciativa pessoal. Devo, no entanto, dizer que os laços de afectividade, constantemente afirmados, com todos os que me sucederam nestes locais de trabalho, escancaram-me as respectivas portas e mimam-me com múltiplas e carinhosas atenções. Mas é só isso. E é pena.

Falando da generalidade, sente-se que, da parte dos que nos substituem, há como que um “isto, agora, é nosso”, “nós é que sabemos”, “nós, agora, é que mandamos”. Diga-se que vivemos uma cultura moderna que endeusa tudo o que é novo (ou que aparenta sê-lo) e fomenta a necessidade de renovação.

Esperança média de vida aumentou 10 anos desde 1980. (atlasdasaude.pt)

É voz corrente ouvir-se dizer que, “sempre que morre um velho, é uma biblioteca que se perde”. Importa, pois, que essa “biblioteca”, seja ela de saber popular ou erudito, se abra aos que dela possam beneficiar.

São muitos os velhos em que o cérebro assiste, consciente e impotente, à degradação física do respectivo corpo, o que, convenhamos, não é agradável. Como resposta, buscam e adoptam comportamentos e actividades compatíveis com essa realidade incontornável. São muitos os velhos que – profissionalmente, exerceram intensa actividade intelectual e que o chamado “limite de idade” arrumou na irremediável e penosa condição de pensionistas – continuam, por muitos anos, intelectualmente activos. É, pois, nesta classe de cidadãos que procuro situar-me, fruindo o dia-a-dia, com alegria de viver, fazendo por esquecer ou minimizando, com recurso à medicina, as artrites, as deficiências coronárias e demais mazelas próprias da idade.

Créditos: Jon Flobrant (Unsplash)

Divulgar a ciência que cultivei, como geólogo e professor de Geologia, a par de experiências e ideias que fui acumulando ao longo da vida, foi a opção que tomei, no sentido de tornar útil o meu tempo de pensionista. Sem horário de trabalho fixado, sou dono de todo o meu próprio tempo, que reparto a meu bel-prazer; e dele fazem parte, entre outras ocupações, transmitir, pela palavra escrita e falada, o que a vida em sociedade e a profissão me ensinaram, a par de uma intervenção cívica focalizada, sobretudo, na defesa e na salvaguarda do nosso património geológico e paleontológico.

Os textos que, com propósitos científicos e pedagógicos, de há muito venho divulgando, têm como destinatários preferenciais os professores que, nas nossas escolas básicas e secundárias, se debatem com falta de elementos que complementem os tradicionais livros adoptados. Visam, ainda, o cidadão comum, interessado em conhecer o chão que pisa e lhe dá o pão. Não pretendo, longe disso, ensinar algo de novo aos meus pares, alguns deles bem mais entendidos do que eu nestas matérias. A esses, muitos deles meus ex-alunos, recorro, sempre que necessário, para que me esclareçam dúvidas, me aconselhem ou ensinem algo do muito que já sabem, estimulando-os a que, com o mesmo espírito de missão, a mesma simplicidade e igual humildade no que procuro transmitir, se disponham a divulgar a ciência que cultivam.

02/06/2022

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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