Viagem por um país doente: a medicina de família no combate à pandemia no Brasil

 Viagem por um país doente: a medicina de família no combate à pandemia no Brasil

“Faz silêncio e olha para quem está do seu lado” — foi a frase da poetisa Mana Bernardes que veio à cabeça da médica Luna Jeannie, atuante no Sistema Único de Saúde (SUS), quando questionada sobre o que era a Medicina de Família e Comunidade (MFC).

De acordo com a Secretaria de Saúde de Santa Catarina (SC), “o médico de família e comunidade é o especialista que atende problemas relacionados com o processo saúde-enfermidade, de forma integral, contínua e sobre um enfoque de risco, no âmbito individual e familiar. Com uma visão holística, leva em consideração o contexto biológico, psicológico e social, reconhecendo que a enfermidade está fortemente ligada à personalidade e à experiência de vida de cada pessoa”.

O conceito formal difere da forma poética com que a médica enxerga esses especialistas, mas explica, também, o que a levou a ter essa visão sobre esses profissionais.

O Brasil – o que não é banal – é o único país com mais de duzentos milhões de habitantes que oferece serviço de saúde gratuito a toda a sua população. Desenhado pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde, o SUS, irá receber boa parte dos infectados pelo novo coronavírus, visto que ele é o sistema responsável pelo atendimento de 78% dos brasileiros.

O sistema público atua consoante cada comunidade

Dividido em cinco regiões definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, cada uma delas carrega particularidades e singularidades que fazem do país um lugar bastante rico e diversificado. Em cada canto, o sistema público atua, em especial os médicos de família, levando em conta a forma como cada comunidade é e como isso influencia na relação saúde-enfermidade.

Desde grandes metrópoles até regiões remotas, na linha de frente do combate à covid-19 estão seres humanos, por trás das máscaras e do jaleco, que, além de tentarem vencer o vírus, lutam contra o medo em condições sociais desiguais, buscando, ainda, entender e ajudar a sociedade a atravessar a pandemia, em meio a mudanças na rotina dentro e fora do trabalho.

Indispensáveis esses profissionais tanto para diminuir o fluxo de pacientes nos grandes hospitais quanto para esclarecer a população por meio de informações científicas e fidedignas.

As médicas e médicos de família estão entre os grupos mais vulneráveis às consequências emocionais e psicológicas da pandemia, principalmente por lidarem com as dores do outro, diariamente. Eles encaram rotinas exaustivas, onde o foco é dar tudo de si para cuidar dos pacientes infectados.

 Neste cenário, e, no mês em que se comemora o Dia Mundial do Médico de Família, chegou a vez de dar voz a quem sempre esteve atento a quem está do seu lado, ao mesmo tempo que valida e respeita os conselhos de quem cuida. As Unidades Básicas de Saúde (UBS) são, à luz deste quadro geral, a porta de entrada preferencial para o SUS e são também o local onde atuam os médicos de família. E, consequentemente, são o primeiro lugar a que a população recorre ao apresentar algum sintoma da Covid-19.

Muitas vezes esquecidos devido a uma visão “hospitalocêntrica”, os médicos de família ou de comunidade exercem papel fundamental na prestação de serviços de saúde. São eles e as equipes de atenção primária que fazem a detecção precoce dos casos, além de atuarem na educação pública, relativamente aos riscos de doenças. O alcance da prestação de serviços desses profissionais, em um país continental e multicultural como o Brasil, abrange desde grandes, médias e pequenas cidades, até populações ribeirinhas, indígenas e quilombolas.

Vamos, então, fazer uma breve viagem pelo país, para melhor percecionarmos os contornos de um fenómeno que veio agravar as já precárias condições de milhões de pessoas.

No Sul: teleconsultas e WhatsApp

Na região sul do País, em Santa Catarina, Murillo Feitosa de Melo, médico de família e comunidade assumiu recentemente uma vaga do novo edital do Programa “Mais Médicos”, na comunidade do Monte Cristo, no município de Florianópolis. O programa começou em meados de abril e, quando deu início ao trabalho, a Unidade Básica de Saúde já estava toda preparada para a pandemia. Uma unidade grande, que comporta cinco Equipes de Saúde da Família (ESFs), onde a população é maioritariamente vulnerável.

Para evitar aglomerações, a porta da Unidade permanece fechada com uma grade, onde se mantêm alguns técnicos e uma enfermeira, para fazer uma triagem das pessoas que chegam. Portanto, a população não pode entrar livremente e é sempre orientada a fazer contato por meio do WhatsApp antes de dirigir-se até o local. Cada equipe possui um celular com “WhatsApp Bussiness”, fornecido pela prefeitura.

 Em razão das circunstâncias atuais, o acolhimento das pessoas dá-se por meio da troca de mensagens, a fim de tentar resolver virtualmente o máximo de questões e casos possíveis. “Têm sido realizadas muitas ‘teleconsultas’ e conseguimos equacionar a maioria dos assuntos por ali mesmo. Quando se vê a necessidade de uma avaliação presencial, marcamos na agenda e liberamos o acesso dessa pessoa para dentro da Unidade em um horário estipulado”, afirma Murillo Feitosa.

A estrutura física da Unidade é em formato de ilha, com a recepção no centro e outros 4 corredores com salas e consultórios. Os atendimentos foram divididos em dois. No primeiro corredor do lado esquerdo, todas as salas foram reservadas para os sintomáticos respiratórios, isto é, aqueles que têm uma chance maior de estarem infectados pelo novo coronavírus. Do outro lado, as salas e corredores ficam reservadas para as teleconsultas e atendimentos presenciais. Segundo Murillo Feitosa, todos os elementos da equipe estão sempre protegidos por equipamentos de proteção individual.

Muitas famílias nem sempre têm água para fazer lavagem das mãos

Conforme relatado pelo médico de família, em relação aos atendimentos dos suspeitos de covid-19, ainda há um fluxo considerado baixo, ocorrendo entre oito a 12 atendimentos por dia. Por atender uma comunidade vulnerável, Murillo relata dificuldade em transmitir algumas informações a seus pacientes: “por exemplo, quando é necessário que a pessoa fique em isolamento domiciliar, nem sempre é possível, pois muitas famílias de cinco a oito pessoas vivem em casas de 1 a 2 cômodos. Nem sempre têm água para fazer lavagem das mãos e temos que orientar medidas para reutilização de água. Também já recebemos relatos de pessoas que estavam passando fome, em razão da perda de emprego e da impossibilidade de acessar auxílio emergencial”.

Muitos dos serviços que eram prestados antes da pandemia não estão sendo providos, tais como atendimentos de puericultura (rotina da criança), cirurgias ambulatoriais, coleta de preventivo, colocação de DIU, dentre outros. O Médico de Família disse que, de modo geral, as pessoas têm compreendido e estão gostando de poderem ser consultadas via WhatsApp, em que pese ainda estarem adaptando-se à tecnologia.

 Mas outras não se adequaram bem, seja por não entender o funcionamento da ferramenta, seja por outras limitações. “Muitos não sabem ler, só conseguem mandar áudio e não sabem como utilizar tecnologias como a videochamada. Algumas pessoas não têm dinheiro para colocar crédito no celular no momento. Alguns idosos moram sozinhos e não dispõem de celular. Então, nesses casos, a triagem da porta pode abrir uma exceção e deixar a pessoa entrar para atendimento por demanda espontânea”, conta Murillo.

A Medicina de Família pode alcançar mais pacientes por intermédio de práticas inovadoras, tal como a utilização das tecnologias de rede. O sistema de saúde digital foi implantado na Unidade durante a crise. Contudo, é preciso levar em conta a singularidade de cada pessoa e o contexto social em que ela está inserida. Por esse motivo, o Posto de Saúde da comunidade de Monte Cristo mantém a abertura das portas para casos excepcionais.

Fazendo um balanço do atual momento, o médico Murillo Feitosa conclui: “vejo que a atenção primária à Saúde, forte e bem consolidada, auxiliou na criação de protocolos embasados em evidências científicas confiáveis. Isso, junto com o uso de tecnologias de atendimento virtual, para evitar aglomerações, bem como a disponibilidade de exames para diagnóstico de covid-19, fazem com que Florianópolis seja uma cidade que está conseguindo achatar a curva de contágio, sem sobrecarregar o sistema de saúde”. Até o final desta matéria, de acordo com o boletim oficial divulgado pela Secretária de Saúde de Santa Catarina, o Estado contabilizava um total de 6.696 casos confirmados, sendo 644 na cidade de Florianópolis.

No Sudeste em contramão com Bolsonaro

A uma distância de Florianópolis, em linha reta, de 542 km, Ugo Caramori, médico de família e comunidade, encontra-se no Estado mais populoso do Brasil, São Paulo. O primeiro lugar a receber um infectado por coronavírus e o atual epicentro de contaminação do País, onde o número de infectados, até o momento, atinge a assustadora marca de 82.161 casos.

Para o médico, que está cursando também especialização em Administração em Saúde pela Universidade de Campinas (UNICAMP), os impactos epidemiológicos e sanitários da disseminação do novo coronavírus são realidades previsíveis. Nosso Estado enfrenta, neste momento, não só uma pandemia de um vírus, senão todas as nossas fragilidades acentuadas no que se refere ao cuidado de nossos usuários no sistema público de saúde”. E complementa: “Vemos um sistema de atenção primária à saúde desorganizado e complexo tomar novos fluxos / “tracks” para responder às necessidades de saúde geradas pela pandemia, o que nos desafia a pensar como iremos conduzir todas as demais necessidades que já existiam e, subitamente, veem seus cuidados interrompidos ou reformatados”.

Vemos o processo de determinação social nu e cru diante de nossos olhos

Por ser o ponto de chegada do vírus, as medidas para controle de propagação no Estado de São Paulo começaram antes de outros lugares no País. Em 24 de março, o governador João Doria (PSDB) decretou o isolamento social no Estado, na contramão da opinião do Presidente da República. Por aderirem às determinações da OMS para contenção da pandemia, em vídeo recentemente divulgado pela imprensa, o Presidente Jair Bolsonaro (Aliança pelo Brasil – partido ainda não formalizado) referiu-se aos governadores, João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, como “estrume”, na polêmica reunião ministerial do último dia 22 de abril.

Sobre as divergências entre essas autoridades na resposta à crise, Ugo Caramori comenta: “vemos uma polarização política importante entre Governos Municipais, Estadual e Federal na adesão à quarentena e ao isolamento social, a única e eficaz estratégia de resposta à doença. Vemos o processo de determinação social nu e cru diante de nossos olhos, vemos a periferia sofrer ainda mais com as iniquidades e com a falta de acesso”.

De acordo com o Médico, a Medicina de Família e Comunidade – especialidade que presta assistência de forma continuada, integral e abrangente às pessoas e à comunidade – desempenha, neste momento, papel crucial. “Devemos olhar para as perguntas que esta pandemia nos traz e saber buscar as respostas por meio de um olhar ampliado, baseado em evidências, em defesa do cuidado integral das famílias brasileiras e considerando sempre a comunidade enquanto um elemento vivo, dinâmico, com que se deve compartilhar nossos planejamentos de promoção de saúde e terapêuticos. A Medicina de Família e Comunidade depois da pandemia, como nunca antes, entendeu a potência e o valor da comunidade para o processo de saúde-doença. Desde a realização do diagnóstico comunitário às intervenções compartilhadas e eficazes”, explicou.

Trata-se revisitar um modelo de sociedade que viemos sustentando até agora, e pensar como uma crise sanitária coloca em questão o papel social de cada indivíduo

E finaliza cobrando a colaboração de cada um para uma mudança geral: “entender essa pandemia requer mais do que nossos conhecimentos fisiopatobiológicos. Trata-se revisitar um modelo de sociedade que viemos sustentando até agora, e pensar como uma crise sanitária coloca em questão o papel social de cada indivíduo. O coronavírus não pode ser extinto, mas poderá ser vencido. Ficando juntos e em casa!”

O Sistema de Monitoramento Inteligente do Governo de São Paulo atualiza diariamente o índice de adesão ao isolamento social no Estado, desde o último dia seis de março. A aceitação da população vem oscilando, e, na data de 24de maio, de acordo com o gráfico divulgado, 51% respeitavam a medida.

No Centro-Oeste: abismo entre quem manda e quem sofre

Foi com vontade de compreender as singularidades – mencionadas também por Ugo – que o médico Pedro Ruas decidiu por sua especialização: “encontrei-me na Medicina de Família e Comunidade ao deparar-me com seres humanos em suas formas, saberes e culturas, e enxergar que, em cada consulta, havia o encontro com um universo espetacular de cada paciente”, conta o médico.

Alocado em Brasília, Pedro Ruas acredita que, neste momento de pandemia, ficam ainda mais evidentes as vulnerabilidades e desigualdades de nosso País, o que lhe causa crescente aflição: “Vejo, por exemplo, uma matriarca de seus quase 80 anos sendo internada por coronavírus e vivendo em uma casa de um único cômodo com mais 10 pessoas, todos positivos para covid-19. Como falar de isolamento social para quem vive da informalidade? Como falar de isolamento social em um país em que empregados domésticos são considerados serviços essenciais? Como isolar uma família que vive num mesmo cômodo com 10 pessoas?” pontua.

Os trabalhadores pegam transporte público lotado, fazem filas imensas nos bancos, lotam os leitos do SUS e, por último, os cemitérios

Na capital do País, as fronteiras sociais não se atenuam. A politização de assuntos de saúde pública atinge proporções graves, como relata Pedro. “Próximo de onde eu trabalho — sublinha o clínico — o presidente ri e debocha do uso de um medicamento que cientificamente se mostrou com mais riscos do que benefícios em seu uso, no mesmo dia em que o país bate recorde de número de mortes. Quem ganha com o uso da hidroxicloriquina? Quem perde eu conheço e atendo. O abismo entre quem manda e quem sofre vai muito além dos poucos quilômetros de distância entre o Palácio do Planalto e a Unidade Básica de Saúde em que atuo”, realça, de forma sentida, Pedro Ruas.

A confusão de discursos entre médicos e o Governo do País tem consequências, conforme relata ao falar sobre o dia-a-dia na Unidade em que atende: “É visível no meu trabalho que a curva está aumentando. Há um mês recebíamos uma ou duas pessoas com suspeita, por período. Hoje, recebemos mais de 10 pessoas suspeitas por período. Trabalho em uma Unidade de Saúde considerada ‘sentinela’ para casos suspeitos, ou seja, ela é referência para os casos da covid-19.”

Mas Pedro, assim como Ugo, acredita que o problema que enfrentamos é consequência da construção histórica do País.

 “Jorge Amado, em seu renomado livro ‘Capitães da Areia’, fala sobre a epidemia de varíola que ocorreu no Brasil no século passado e deixa bem nítido a diferença brutal entre ricos e pobres: os ricos podiam ter a vacina, e os pobres tinham a própria sorte. Essas evidências continuam em alta, somos bombardeados por grandes empresários suplicando pelo fim do isolamento do alto de suas coberturas – ou enquanto agridem profissionais de saúde. Do outro lado, os trabalhadores pegam transporte público lotado, fazem filas imensas nos bancos, lotam os leitos do SUS e, por último, os cemitérios”, menciona, com pesar, o médico.

Se não fosse o SUS, não sei o que seria de nossos pacientes, do povo e de mim tampouco

Pedro finaliza colocando em evidência suas esperanças pessoais, profissionais  sobre o futuro no sistema público de saúde: “ainda assim temos o Sistema Único de Saúde, universal, gratuito e completo. É um convite à reflexão sobre a importância do serviço público e da atuação do Estado, em um país tão grande quanto o nosso. Sou orgulhoso e, ao mesmo tempo, temo muito pelo SUS, tão atacado. O SUS deve ser fortalecido e enaltecido por todos. É a maior política de Estado do Brasil. Não foi criado por ninguém e não pertence a ninguém senão ao próprio povo brasileiro. Trabalhar no SUS é algo muito reconfortante para mim. Se não fosse o SUS, não sei o que seria de nossos pacientes, do povo e de mim tampouco. Eu amo saber que faço parte dessa política de Estado, que é para todos”, conclui.

Até o fechamento desta matéria, o Distrito Federal contabilizava 6.638 casos confirmados de covid-19, embora uma análise feita por pesquisadores da Universidade Federal de Brasília e da Universidade de São Paulo aponte que o número de moradores do Distrito Federal (DF) infectados pelo novo coronavírus pode ser cinco vezes maior do que o total divulgado pela Secretaria de Saúde do DF.

No Norte sem isolamento social

No norte do País, logo no início do mês, Tocantins ocupava a honrosa marca de último colocado em casos de contaminação no ranking nacional.  No dia 30 de abril, o Estado tinha apenas 164 registros da covid-19 e chegou, a 24 de maio, a 2.430, um aumento de 1.381,7% em apenas 22 dias.

E foi lá, poucos dias depois do primeiro caso positivo no Brasil, que João Custódio Calenti começou a atuar como Médico de Família. “Já cheguei a meio do caos que se tornou a rotina dos profissionais de saúde durante a pandemia. Eu e meus colegas tivemos que adiar consultas de cuidado continuado que estavam agendadas e começar a atender somente urgências e emergências e casos suspeitos da covid-19 para diminuir o fluxo de usuários na Unidade”, refere o médico.

Medidas de prevenção foram tomadas na Unidade Básica de Saúde em que trabalha. Conforme relatou, os servidores incluídos no grupo de risco precisaram ser afastados, e a equipe foi reduzida. As visitas domiciliares foram desmarcadas devido ao risco de estarem sempre em contato com pacientes sintomáticos na Unidade, a fim de não correr o risco de infectar quem os receberia para atendimento em suas casas. Passaram a trabalhar em escalas com vista a evitar aglomeração de pessoas.

Enquanto a curva de contaminação aumenta, os números mostram que o Estado de Tocantins, Palmas, é um dos que menos cumprem o isolamento social

Como o Estado apresentava baixa taxa de contaminação, João iniciou o trabalho esperançoso. “De início achei que não teríamos muitos casos nos Centro de Saúde da Comunidade (CSCs), mas logo começaram a chegar pacientes com os sintomas e estávamos eu e meus colegas diante de uma doença nova e ainda muito desconhecida, atendendo em salas de isolamento dentro da Unidade de saúde”.

Recém-formado, João teve contato com a Medicina de Família e Comunidade, pela primeira vez, nas aulas de Prática em Serviço Público de Saúde, logo no segundo período da faculdade. Mas foi no internato que se apaixonou de vez pela atenção básica e, logo que obteve o diploma, foi aprovado no exame de residência.

Devido à pandemia, o programa de residência precisou sofrer algumas alterações, conforme relata: “aulas e reuniões que eram presenciais passaram a ser feitas online para que pudéssemos dar continuidade à nossa jornada. Apesar de todas as mudanças ocorridas na nossa rotina e da falta de conhecimento sobre a nova doença – o que nos assusta muito –, tem sido motivo de orgulho para mim e meus colegas poder estar na linha da frente dessa batalha e poder ajudar a população como médicos residentes de família e comunidade”.

A capital do Estado de Tocantins, Palmas, onde João Custódio começa sua jornada na Medicina de Família contabiliza 408 casos. Enquanto a curva de contaminação aumenta, os números mostram que o Estado é um dos que menos cumprem o isolamento social.

No Nordeste a ouvir a Rádio Quarentena

Enquanto para muitos o isolamento é uma medida difícil de seguir, Camila Yuri Antoniassi Endo mudou-se de Florianópolis para atuar como Médica de Família em uma península no sul da Bahia, em uma comunidade com característica rural e litorânea, numa cidade cujo acesso é bastante difícil (42 km de estrada de terra ou por barco). Ela já esperava que haveria um isolamento do mundo exterior, mas, com a pandemia, tudo se intensificou.

Após as notícias de novos casos nas cidades vizinhas, conforme a médica relatou, foi convocada uma reunião dos profissionais de saúde em Maraú, cidade em que vive, para decidir sobre as medidas a serem adotadas. A orientação foi a de fechar o comércio, as escolas, as pousadas e restaurantes e bloquear a entrada do Município para não moradores, exceto para prestadores de serviços essenciais.

Ela conta como se sentiram: “Ficamos apreensivos, pois parte do município encontra-se em uma península muito procurada para o turismo, atividade econômica importantíssima para o sustento de muitos moradores”. Mas desabafa: “para nosso alívio, a Prefeitura e a Secretaria de Saúde concordaram com todas as recomendações e iniciou-se o trabalho de distanciamento social, por meio de decretos, fiscalizações das entradas do município e conscientização da população sobre o momento vivido”.

Como pilar de confiança e respeito nas comunidades, uma das bases da Medicina de Família é trabalhar para melhoria da compreensão dos riscos, em especial em casos de crise. Podem, assim, por intermédio de seus encaminhamentos e relação com o Governo e seus líderes, comunicar esses riscos e criar oportunidades para mitigá-los com a comunidade de forma mais verdadeira e certeira. E assim aconteceu.

Até agora, três meses depois de as medidas terem sido tomadas, apenas cinco casos foram confirmados, quatro deles provenientes de outros municípios. O comércio local voltou a funcionar depois do primeiro mês de isolamento, viagens para outras cidades são permitidas aos moradores quando necessário, mas mantendo-se sempre a vigilância e os cuidados de quarentena com todos aqueles que chegam.

Mas Camila relata que o processo de compreensão da população não foi fácil: “inicialmente, o coronavírus parecia muito distante para nossa população, mas, com o avanço dos casos na região, os moradores passaram a sentir medo. O município não tem estrutura para manejar casos moderados ou graves, e o nosso hospital de referência fica a cerca de duas horas daqui — quando a estrada está boa”. Acerca da falta de estrutura revela: “eu nunca senti medo de morrer de covid-19, mas aterroriza-me a ideia de não conseguir fazer quase nada por um paciente que pode apresentar maior gravidade”.

Com 80% dos leitos ocupados, é impossível não recear um cenário de colapso do sistema de saúde num futuro próximo

Outro medo que se tornou parte do cotidiano é o de encaminhar pacientes, enfermos por outras razões, até a Unidade de Referência, já que grande parte dos casos da região vieram de lá. “Meus pacientes não querem viajar. Quando encontro sinais de gravidade, preciso explicar inúmeras vezes o porquê da necessidade de encaminhamento e os riscos de permanecer aqui, sem o suporte necessário. Eu divido com meus pacientes essa angústia, não tiro sua razão. E angustia-me sobretudo pensar numa terceira onda de mortes por conta do coronavírus, tanto pela infecção com o vírus quanto por condições sensíveis à atenção primária, por ‘descompensação’ dos quadros crônicos ou por quadros agudos em que os pacientes não buscaram hospitalização”, declara a médica.

No hospital de referência, ainda não estão ocorrendo casos de mortes por falta de leitos, mas, com 80% dos leitos ocupados, é impossível não recear um cenário de colapso do sistema de saúde, em um futuro próximo. Dentro da Unidade de Saúde em que trabalha, estão priorizando atendimentos de urgência e emergência, mas com bastante sensibilidade ao julgar o que pode ser urgente neste momento.

“Tantas pessoas com sofrimento psicológico importante devido à pandemia, o medo de adoecer, tantas outras passando por necessidades financeiras por não poder trabalhar, a violência doméstica que se eleva com a permanência das famílias inteiras em casa diariamente… não dá para julgar urgências e emergências como num pronto atendimento. Formei-me como especialista em gente, cuido de todas as pessoas em seus diferentes contextos e preciso estar atenta a coisas que, dentro de uma medicina ‘hospitalocêntrica’, não seriam consideradas prioridades”, conta.

A cada tratamento comprado pudemos oferecer a oito pessoas de baixa renda o mesmo tratamento

E a cada narração sobre o dia-a-dia durante este período, é possível notar a imersão no atendimento à comunidade. Camila conta que “o médico de família é o primeiro a entrar e o último a sair. Não dou alta a meus pacientes, o acompanhamento é contínuo ao longo de toda a vida. Dói-me ver o quanto a pandemia prejudica a longitude do cuidado. Acompanho, à distância, meus pacientes crônicos — explicita — tentando evitar que se exponham ao novo coronavírus. Quando necessitam de atendimento, sempre procuramos atender ou nas casas ou em momentos em que o Posto de Saúde está mais vazio, evitando aglomerações e contatos prescindíveis”. E completa: “sinto falta de abraçá-los, quando chegam no meu atendimento, de tomar um café nas visitas domiciliares, mas sei que eles entendem que não é por falta de carinho, muito pelo contrário”.

 O cuidado parte, primeiramente, em assumir-se como potencial vetor de contaminação, junto com toda a equipe do Posto de Saúde, já que estão tratando e atendendo diariamente pessoas doentes. De acordo com a médica, todos trabalham com os equipamentos de proteção individual, higienizam os consultórios após cada atendimento, tendo ainda separaram um local para atender sintomáticos respiratórios. E, em suas casas, procuram manter distância dos familiares, principalmente aqueles que fazem parte do grupo de risco.

Para superar o distanciamento e manter a população informada, Camila e mais um médico de família começaram um projeto por eles batizado de “Rádio Quarentena”. Nessa iniciativa, conforme relatado, “através de áudios, transmitimos orientações semanais, informações de qualidade e baseadas em evidências para a população, tentando manter-nos próximos de nossos pacientes, apesar de distantes, fisicamente”.

Como, até agora, nenhuma medicação se revelou eficaz no tratamento do vírus, a equipe tenta estimular hábitos de vida saudáveis para melhorar a imunidade de todos. Também fizeram um projeto juntamente com um homeopata da comunidade: “Oferecemos aos moradores com condições de pagar um tratamento para melhoria da imunidade, o qual tem sido usado na Índia desde o início da pandemia, com bons resultados e sem efeitos colaterais ou interações medicamentosas. A cada tratamento comprado pudemos oferecer a oito pessoas de baixa renda o mesmo tratamento. Dessa maneira, conseguimos tratar quase toda a população de nossa área. Iniciamos pelos idosos, profissionais de saúde e doentes crônicos e, depois, estendemos para os comerciantes, policiais e outros trabalhadores dos setores de serviços essenciais do município e suas famílias.”

Maraú tem uma história longa de cuidado feito por parteiras, visto que o acesso às cidades vizinhas há alguns anos era ainda pior. Por essa razão, muitas gestantes estão optando por não ir até a maternidade. Algumas, inclusive, optam por parir na própria Unidade de Saúde. Conforme relata a médica: “Vejo que a decisão compartilhada deve fazer parte do parto humanizado e de qualquer atendimento em saúde que seja humanizado. Sempre que possível, eu respeito a vontade de meus pacientes e me desdobro para fornecer o melhor cuidado de acordo com essas escolhas”.

Aprendemos a importância de olhar nos olhos, de comunicar-nos melhor com palavras e olhares. Cuidamos uns dos outros

Uma das novas experiências que Camila vivenciou durante este período foi participar de um parto: “Assistir ao nascimento de uma nova vida refresca os ânimos da equipe, dando um novo frescor a nosso trabalho, tão carregado de tensões nos últimos meses”.

Para concluir, contou-nos um pouco sobre os ensinamentos que o atual momento lhe tem proporcionado: “O uso das máscaras faz-nos ainda mais parecidos uns com os outros. Identificamo-nos como parte de um todo, de uma comunidade que necessita trabalhar junta para vencer os problemas dessa nova realidade. Aprendemos a importância de olhar nos olhos, de comunicar-nos melhor com palavras e olhares. Cuidamos uns dos outros. Vejo em todos os lados correntes de solidariedade neste momento difícil e observo a natureza recuperando-se dos males causados pela intervenção humana, o que me dá alguma esperança em um mundo melhor. Muitas vezes precisamos de uma crise, uma ruptura no sistema para que possamos ver o mundo de outra maneira”.

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Jéssica Neves

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