Victor Ramos: “Lei de Bases da Saúde não é luxo, mas pão para a boca”

 Victor Ramos: “Lei de Bases da Saúde não é luxo, mas pão para a boca”

Victor Ramos, presidente da Fundação para a Saúde – Serviço Nacional de Saúde.

“Em 2020, a pandemia veio mudar os modos de ver e de valorizar os dispositivos públicos de protecção e de promoção da saúde, em todo o Mundo. Na União Europeia, que sempre fugiu a interferir na política de saúde dos Estados-membros, a situação também mudou. Agora, a saúde e as políticas de saúde passaram a estar na agenda da União.” As palavras são de Victor Ramos, presidente da Fundação para a Saúde – Serviço Nacional de Saúde (FSNS) que, diante de um cenário global, defende sem a menor hesitação a necessidade de Portugal “reforçar o SNS no que respeita aos seus meios e recursos”. Ao mesmo tempo, dirá nessa linha de pensamento, “é necessário proceder a alterações estruturais para que, ao acrescentar meios e recursos, eles possam produzir os resultados esperados e necessários”. Este alerta de Victor Ramos ocorre cerca de ano e meio depois de ter sido aprovada, na Assembleia da República, a nova Lei de Bases da Saúde (LBS), a qual entende que “não pode ficar parada no tempo”.

Em entrevista ao sinalAberto, considera que “a covid-19 terá de continuar a ser uma das prioridades por mais algum tempo, mas as cerca de 90% das restantes necessidades de saúde não deverão ser descuradas”. Defende, aliás, que “o marco na política de saúde nacional é a nova Lei de Bases da Saúde, não é o Manifesto SNS 2021.

Apaixonado pela medicina comunitária e de proximidade, Victor Ramos é um reconhecido protagonista da Medicina Geral e Familiar, no contexto dos cuidados de saúde primários, e também professor na Escola Nacional de Saúde Pública.

Porém, o que o mobiliza é a “rápida aplicação no terreno” da nova LBS, disponibilizando-se os subscritores do referido documento a colaborar para “ajudar a concretizar as propostas e sugestões” enunciadas.

“Uma lei tão essencial não pode ficar parada mais tempo. Foi aprovada na Assembleia da República em 4 de Setembro de 2019. Reconhece-se a difícil e absorvente situação que a pandemia representa para o Governo, mas conviria dar também atenção a esta questão.”

sinalAberto – A Fundação para a Saúde – Serviço Nacional de Saúde (FSNS) reivindica, com o Manifesto SNS 2021, a rápida aplicação dos princípios contidos na nova Lei de Bases da Saúde. O que entende estar em risco, atendendo à urgência deste apelo?

Victor Ramos – Perdoe-me um reparo à palavra “reivindica”, porque não é esse o tom nem o espírito do Manifesto SNS 2021. Este é, essencialmente, um gesto construtivo de cidadania responsável, por parte dos seus subscritores. É uma manifestação de “disponibilidade para colaborar no que for necessário e estiver ao seu alcance fazer para ajudar a concretizar as propostas e sugestões” nele enunciadas. Uma lei tão essencial não pode ficar parada mais tempo. Foi aprovada na Assembleia da República em 4 de Setembro de 2019. Há quase um ano e meio. Reconhece-se a difícil e absorvente situação que a pandemia representa para o Governo, mas conviria dar também atenção a esta questão.


sA – Como médico de família e dirigente da Fundação para a Saúde, apercebeu-se das dificuldades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com a pandemia do novo coronavírus. Num âmbito mais alargado, quais as mudanças estruturais do sistema de saúde inadiáveis?

VR – Claro que é necessário reforçar o SNS no que respeita aos seus meios e recursos. Mas também é necessário proceder, simultaneamente, a alterações estruturais, para que, ao acrescentar meios e recursos, eles possam produzir os resultados esperados e necessários. As mudanças propostas estão descritas ao longo do Manifesto e são interdependentes. As sessões do IV Congresso SNS, que decorreu em Dezembro de 2020, destacaram quatro pilares essenciais: a integração de cuidados centrada na pessoa; as redes de proximidade para a continuidade e coerência dos cuidados; as profissões e os profissionais do SNS; e a necessidade de reforçar e transformar o SNS como um todo.

“Felizmente, começamos a vislumbrar a luz ao fundo do túnel relativamente ao controlo da pandemia. A vacinação anticovid-19 irá, progressivamente, criando folga para olhar e agir relativamente ao que ficou em espera.” (Martha Dominguez de Gouveia – Unsplash)

sA – Este é o momento oportuno para avançar com o Manifesto SNS 2021?

VR – Felizmente, começamos a vislumbrar a luz ao fundo do túnel relativamente ao controlo da pandemia. A vacinação anticovid-19 irá, progressivamente, criando folga para olhar e agir relativamente ao que ficou em espera.


sA – Quais as prioridades na saúde dos portugueses nesta época de mudança e de múltiplas incertezas? Acha que o Manifesto SNS 2021 constitui um marco na política de saúde nacional? Porquê?

VR – Todas as épocas são de mudança e de múltiplas incertezas. Algumas, porém, atingem níveis críticos, como é o caso actual. Por outro lado, hoje, as características da população, a epidemiologia dos problemas e necessidades de saúde e as expectativas sociais são bastante diferentes das de há 50 ou 40 anos, quando foi criado o SNS. Por isso, é necessário transformar o SNS para que este possa dar respostas cada vez mais qualificadas ao complexo conjunto de necessidades de saúde da população. Estas incluem, agora, um número crescente de pessoas com mais idade, com morbilidade múltipla e dependência. A covid-19 terá de continuar a ser uma das prioridades por mais algum tempo, mas as cerca de 90% das restantes necessidades de saúde não deverão ser descuradas.

O marco na política de saúde nacional é a nova Lei de Bases da Saúde, não é o Manifesto.

A expressão “marcos de percurso” refere-se à vida e acção da Fundação. São já sete anos de construção de pensamento crítico, de acolhimento de ideias, de organização de conhecimentos, de formulação de propostas. Em 2013, a FSNS organizou o I Congresso SNS: Património de Todos, na Reitoria da Universidade de Lisboa. Dele resultou o livro Serviço Nacional de Saúde – Para uma Conversação Construtiva, editado em 2014. Em 2016, o II Congresso, no Porto (no Teatro Rivoli), deu continuidade à “conversação construtiva”. Foi então publicado o livro Porto Saúde – Momento e Movimento, obra notável a vários títulos: artístico (pelas fotografias de Renato Roque e ilustrações de Alberto Péssimo), cultural, histórico e técnico-científico, através de contributos de cinquenta autores num “pontuar de olhares para os sucessivos tempos da saúde no Porto e em Portugal”. Em 2018, no III Congresso, em Coimbra, no Convento de S. Francisco, tivemos a infelizmente última participação pública de António Arnaut que, apesar do seu estado de saúde, dirigiu uma mensagem marcante aos participantes no congresso.

Em 2019, muitas das ideias e sínteses foram reunidas no livro Serviço Nacional de Saúde – Breve Interpretação e Linhas para a sua Transformação.

Em 2020, com o SNS submetido à prova de fogo da covid-19, foram publicados artigos e comunicados, compilados em Setembro no livro Para um Serviço Nacional de Saúde (ainda) Melhor. O Manifesto SNS 2021 e o IV Congresso SNS (nesta vez, via “on-line”) são apenas novos marcos que dão seguimento ao percurso descrito.

sA – O pensamento de António Arnaut, de Mário Mendes, de João Semedo e de outros precursores do SNS continua subjacente neste novo olhar e alerta político da Fundação para a Saúde? Ou já não há espaço para perspectivas universalistas?

VR – Absolutamente, sim! A pandemia veio reforçar, em Portugal e também na Europa e no Mundo, a importância e a necessidade destas perspectivas.


sA – O que o fez acreditar que o Manifesto SNS 2021 representa uma condição essencial para o renascimento do SNS já este ano?

VR – Tal como já referi, o Manifesto pretende ser, simplesmente, um contributo construtivo. De resto, ele representa, sobretudo, um “trabalho de casa” baseado na própria Lei de Bases da Saúde. Destaca dez prioridades e assinala as bases, artigos e pontos do texto legal que estão relacionados com elas.


sA – Um dos pilares fundamentais para este renascimento do SNS será a integração de cuidados centrada na pessoa. O clínico Victor Ramos considera que a medicina até agora praticada apenas tem olhado para a doença, esquecendo-se da pessoa doente?

VR – A expressão “integração de cuidados centrada na pessoa” não se refere, no texto do Manifesto, à medicina, mas ao percurso atribulado de muitas pessoas por várias instituições, serviços e cuidados de que necessitam. Isto é, aos hiatos, compassos de espera e descontinuidades tanto de comunicação como de interligação entre cuidados de saúde primários, cuidados hospitalares, cuidados continuados, acção social, organizações da comunidade, etc.

Em relação à medicina, tem havido evoluções muito positivas na formação médica e na prática. A “medicina centrada na pessoa” está a impor-se cada vez mais. A medicina geral e familiar, por exemplo, assume essa atitude e prática como um requisito indispensável para a sua qualidade. Mas há outras especialidades que, felizmente, também cultivam essa abordagem. O problema assinalado coloca-se frequentemente na transição entre especialidades, serviços, instituições.

“A ‘humanização’ da prestação de cuidados é algo multidimensional e dependente de muitos factores. Começa, por exemplo, com o acolhimento nos espaços de secretariado, com a organização do atendimento, o conforto das instalações, prossegue com o modo como os diferentes profissionais comunicam e se relacionam com os doentes, com as orientações e explicações prestadas.”

sA – Na sua opinião, essa suposta desumanização na prestação de cuidados deve-se a quê? Estão apenas em causa os recursos materiais?

VR – A “humanização” da prestação de cuidados é algo multidimensional e dependente de muitos factores. Começa, por exemplo, com o acolhimento nos espaços de secretariado, com a organização do atendimento, o conforto das instalações, prossegue com o modo como os diferentes profissionais comunicam e se relacionam com os doentes, com as orientações e explicações prestadas, etc. É justo salientar que as realidades são muito diversas ao longo do país, de instituição para instituição, na mesma instituição, de serviço para serviço e até entre profissionais do mesmo serviço. A variação é muito grande.


sA – A formação médica favorece os conhecimentos científicos e técnicos em detrimento da observação da pessoa que sofre? O modelo actual das consultas médicas vai ser alterado?

VR – A educação médica também varia muito nas oito faculdades de medicina existentes, as quais, de um modo geral, têm vindo a colocar uma ênfase crescente na qualidade da relação médico-doente. Portanto, a formação médica parece já estar no bom caminho. A título ilustrativo, destaco que no relatório da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] Health at a Glance, de 2020, Portugal surge em segundo lugar no que respeita à experiência das pessoas com os seus médicos, logo a seguir à Holanda.

sA – Quais os avanços no terreno contidos na Lei de Bases da Saúde? Quando é que as pessoas começam a beneficiar dessas medidas? Que necessidades são tidas como prioritárias?

VR – Este é o foco essencial do Manifesto SNS 2021. Para que a Lei passe a ter tradução concreta na realidade, são precisos investimento, labor, visão, planeamento estratégico e gestão das mudanças necessárias para a tornar efectiva. O Manifesto sugere dez prioridades a ter em conta em 2021: novo Estatuto para o SNS; quadro estratégico e planos plurianuais para o reforço do investimento no SNS; política integrada e coerente para as profissões e profissionais de saúde; saúde de proximidade e desenvolvimento dos sistemas locais de saúde; participação dos cidadãos, dos profissionais e controlo social; reforçar os serviços de saúde pública e de vigilância epidemiológica; sistemas e tecnologias de informação; contratualização; regulação sistémica e planeamento estratégico em saúde.


sA – Com as dificuldades que o país enfrenta, também em consequência da covid-19, acredita na plena concretização da nova Lei de Bases da Saúde? As gavetas dos políticos estão cheias de bons argumentos legislativos e de promessas; pensa que agora vai ser diferente?

VR – Precisamente porque é necessário superar essas dificuldades é que é necessário começar a concretizar a nova lei, desde já. Não se trata de um luxo, mas de “pão para a boca”. De resto, a própria pandemia levou as comunidades a soluções que se situam à entrada de vários caminhos definidos na nova Lei de Bases. Os sistemas locais de saúde e os serviços de saúde pública são exemplos disso, entre outros.

“Em 2020, a pandemia veio mudar os modos de ver e de valorizar os dispositivos públicos de protecção e de promoção da saúde, em todo o Mundo.”

sA – Ao reconhecer que os processos de mudança sistémica são muito complexos, julga que o SNS consegue continuar a aguentar as negligências e supostos enviesamentos que têm sido denunciados publicamente?

VR – As negligências e actos a que se refere têm datas, períodos e actores precisos. Felizmente, não foram constantes nem continuados. Vários estudos e obras se referem a eles, em especial os publicados entre 2017 e 2019, designadamente da autoria de António Arnaut e João Semedo, bem como os sobre a História do SNS.

Em 2020, a pandemia veio mudar os modos de ver e de valorizar os dispositivos públicos de protecção e de promoção da saúde, em todo o Mundo. Na União Europeia, que sempre fugiu a interferir na política de saúde dos Estados-membros, a situação também mudou. Agora, a saúde e as políticas de saúde passaram a estar na agenda da União.

Que cada um faça, portanto, o papel e a parte que lhe cabe, em vez de ficar parado a ver acontecer ou a gritar aos outros o que deveriam fazer.

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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