“Viva la Muerte”
No espectáculo “Liberdade, Liberdade…”1, encenado por mim para o Teatro Experimental do Funchal (TEF/ATEF), relatamos um facto controverso protagonizado, em 12 Outubro de 1936, pelo escritor e filósofo Miguel de Unamuno2 e o general falangista José Millán-Astray y Terreros, apoiante de Francisco Franco e fundador de Legião Espanhola.
O cenário seria o “paraninfo” ou auditório da Universidade de Salamanca, da qual, naquele momento, Miguel de Unamuno era reitor. Perante um discurso incendiado do militar que advogava a morte da inteligência e ao grito de “Viva la Muerte!”, o então reitor Unamuno teria respondido com um discurso no qual qualificava as palavras de Astray de necrófilas e insensatas.
Agregando que como filósofo, Miguel de Unamuno tinha passado a vida cultivando paradoxos, como também o fez no discurso que proferiu na Universidade de Salamanca: “[…] devo declarar-vos, aos setenta e dois anos, que semelhante paradoxo me é repulsivo. O General Milan Astray é um aleijado3 [inválido]. Não há, nesta afirmação, o menor sentido pejorativo. Ele é um inválido de guerra; Cervantes também o era. Infelizmente, há, em Espanha, neste momento, um número muito grande de aleijados e, em breve, haverá um número muito maior, se Deus não vier em nosso auxílio. Aflige pensar que um aleijado a quem falta a grandeza de um Cervantes, busque alívio causando mutilações à sua volta… Este é o templo da inteligência! Profanais este sagrado recinto. Vencereis porque tendes convosco a força bruta. Mas não convencereis. Porque, para convencer, é necessário possuir o que vos falta: a razão e a justiça. O General Millán-Astray gostaria de criar uma nova Espanha, uma criação negativa, sem dúvida, de acordo com a sua própria imagem. E é por isso que gostaria de uma Espanha mutilada…”
Furioso, Millán gritou: “Morte à inteligência!” Numa tentativa de acalmar os ânimos, o poeta José María Pemán4 exclamou: “Não! Viva a inteligência! Morte aos maus intelectuais!”
O episódio mítico da História contemporânea espanhola, vinculado à guerra civil (1936-1939), é questionado e rebatido numa investigação por Severiano Delgado Cruz, bibliotecário da Universidade de Salamanca, asseverando que essas palavras foram, posteriormente, “construídas” pelo colunista Luis Portillo Pérez.
Severiano Delgado, que estuda a História local de Salamanca, há anos, é, no entanto, cauteloso. E declara ao jornal espanhol ABC, que prefere definir esse facto como um “mal-entendido histórico”, em vez de uma mentira. Relutante em relação a polémicas, ele também é categórico sobre o objectivo da sua pesquisa.
Independentemente da veracidade ou da precisão histórica deste facto, não podemos negar que, após o final da Guerra Civil, em 1939, até a morte de Francisco Franco, em 1975, a Espanha viveu um regime de “Viva la Muerte” e de “Morte à Inteligência”. Foram milhares os perseguidos e, ainda hoje, não sabemos, ao certo, quantos morreram no conflito civil. Estima-se que meio milhão de pessoas. De facto, foram centenas os exilados, intelectuais, professores, filósofos, músicos, dramaturgos, poetas e cineastas, entre outros, dos quais me atrevo a mencionar apenas alguns: José Ferrater Mora, Max Aub, Ramón José Sender Garcés, Manuel de Falla, Luis Araquistáin, Jose García Lorca, Rafael Martínez Nadal, Luis Buñuel, Rafael Alberti, Pedro Salinas, Luis Cernuda e José Medina Echevarría. Com o fim da Guerra Civil, chegaram ao Chile milhares de espanhóis perseguidos pela ditadura de Franco. Muitos viajaram no “poético navio nerudiano”, SS Winnipeg, que desembarcou no porto de Valparaíso, a 3 de Setembro de 1939.
Não menos dura, foi a sobrevivência daqueles que optaram por não fugir e que foram retaliados, como Antonio Rodríguez y Rodríguez-Moñino, ou viveram amordaçados numa espécie de exílio interior, como Juan Gil-Albert ou Vicente Aleixandre, Prémio Nobel da Literatura, em 1977.
Não esquecendo o assassinato do dramaturgo Federico García Lorca, a primeira vítima do fascismo espanhol e a morte, entre outras, do poeta Miguel Hernández5, na cadeia, em 1942. Nem que as últimas execuções do franquismo foram concretizadas a 27 de Setembro de 1975!
A construção da Basílica de Santa Cruz do Vale dos Caídos, entre 1940 e 1958, foi o desejo do ditador Francisco Franco de criar um mausoléu. Uma obra em que centenas de presos políticos, que viviam em quartéis superlotados, trabalharam como escravos. O semanário Expresso (na edição de 29/03/24) referia-se a “um empreiteiro português que ajudou a edificar o Vale dos Caídos e lucrou com trabalho escravo”6.
Consciente da realidade herdade da Guerra Civil, Fernando Arrabal (poeta e dramaturgo, também cineasta) realizou, em 1971, um filme chamado precisamente “Viva la Muerte”. Nele, verte as suas experiências de infância, narrando o percurso de Fando, uma criança de dez anos, que tenta descobrir o motivo do desaparecimento do pai. Mais tarde, descobre que a sua mãe, uma católica fervorosa, foi quem denunciou o marido, porque ele era antifascista. Fando quer saber o que aconteceu com o seu pai, dividido entre sentimentos de amor e de ódio em relação à sua mãe, na esperança de encontrar o seu pai vivo.
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Notas:
1 – “Liberdade, Liberdade…” – A estreia deste espectáculo foi no dia 19 de Abril, no Centro Cultural e de Investigação do Funchal (CCIF), na ilha da Madeira, podendo ainda ser assistido até ao próximo domingo (5 de Maio).
2 – Miguel de Unamuno y Jugo (1864–1936) ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol. É o principal representante espanhol do existencialismo cristão, sendo conhecido, principalmente, pela sua obra “O Sentimento Trágico da Vida”, que lhe valeu a condenação do Santo Ofício. Foi reitor da Universidade de Salamanca durante três vezes: a primeira em 1902 e a última, de 1931 até à sua demissão, em 22 de Outubro de 1936, por ordem do caudilho Francisco Franco. Passou os seus últimos dias de vida em prisão domiciliária.
3 – Efectivamente, o general Millán-Astray tinha perdido o braço direito e foi ferido, em quatro ocasiões, na Guerra de Marrocos. Em 1924, perde o braço esquerdo e, em 1926, o olho direito, ficando com a alcunha de “Glorioso Mutilado”.
4 – José María Pemán y Pemartín (1897-1981) foi um escritor espanhol que cultivou todos os géneros literários, destacando-se como jornalista, dramaturgo e poeta. Foi um apoiante da ditadura franquista.
5 – O poeta Miguel Hernández morreu de tuberculose numa prisão em Alicante, a 28 de Março de 1942. Um tribunal marcial condenou-o à morte em 1940. E, embora o regime franquista tenha comutado a sua pena em troca de 30 anos de prisão, as condições da sua prisão eram mais implacáveis do que qualquer pelotão de fuzilamento.
6 – Na peça jornalística intitulada “O empreiteiro português que ajudou a edificar o Vale dos Caídos e lucrou com trabalho escravo”, da autoria de Gorka Castillo e publicada na edição (on-line) de 27 de Março de 2024 do Expresso, lemos: “Ainda há capítulos ocultos na tragédia da guerra civil espanhola e dos 40 anos de ditadura que se lhe seguiram. Quando ressurgem, fazem as delícias dos historiadores. Deve ter sido o caso de Xurxo Ayán, arqueólogo do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa; Luis Antonio Ruiz Casero, investigador da Universidade Complutense de Madrid; e a documentarista Márcia Hattori, do Instituto Espanhol de Ciências do Património, que reconstituíram a marca de um português esquivo e misterioso nas pedras do Vale dos Caídos.”
Manuel Rodríguez Crisogno “foi uma das personagens mais desconhecidas que participara na construção do monumento-santuário fascista entre 1943 e 1950”, asseguram os historiadores ao jornal Expresso. “Angariou uma fortuna dirigindo parte daquela obra e relacionou-se com as mais altas esferas do poder franquista até se lhe perder a pista, em 1963, em Madrid. Para nós, foi uma investigação apaixonante”, reconhecem os mesmos historiadores, que publicaram a sua investigação numa das revistas académicas mais prestigiadas da actualidade.
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02/05/2024