“Viva la Muerte”

 “Viva la Muerte”

Espectáculo “Liberdade, Liberdade…”, pelo Teatro Experimental do Funchal (ATEF), com encenação de Roberto Merino. (© ATEF)

No espectáculo “Liberdade, Liberdade…”1, encenado por mim para o Teatro Experimental do Funchal (TEF/ATEF), relatamos um facto controverso protagonizado, em 12 Outubro de 1936, pelo escritor e filósofo Miguel de Unamuno2 e o general falangista José Millán-Astray y Terreros, apoiante de Francisco Franco e fundador de Legião Espanhola.

Miguel de Unamuno e cartaz do filme “Vila la Muerte”, de Fernando Arrabal. (Direitos reservados)

O cenário seria o “paraninfo” ou auditório da Universidade de Salamanca, da qual, naquele momento, Miguel de Unamuno era reitor. Perante um discurso incendiado do militar que advogava a morte da inteligência e ao grito de “Viva la Muerte!”, o então reitor Unamuno teria respondido com um discurso no qual qualificava as palavras de Astray de necrófilas e insensatas.

O facto de ter perdido o braço esquerdo e o olho direito na
Guerra de Marrocos valeu-lhe a alcunha de “Glorioso
Mutilado”. Nas suas aparições públicas, apresentava-se
sempre com uma pala preta e uma luva branca na mão
direita. (a-guerra-civil-espanhola.webnode.pt)

Agregando que como filósofo, Miguel de Unamuno tinha passado a vida cultivando paradoxos, como também o fez no discurso que proferiu na Universidade de Salamanca: “[…] devo declarar-vos, aos setenta e dois anos, que semelhante paradoxo me é repulsivo. O General Milan Astray é um aleijado3 [inválido]. Não há, nesta afirmação, o menor sentido pejorativo. Ele é um inválido de guerra; Cervantes também o era. Infelizmente, há, em Espanha, neste momento, um número muito grande de aleijados e, em breve, haverá um número muito maior, se Deus não vier em nosso auxílio. Aflige pensar que um aleijado a quem falta a grandeza de um Cervantes, busque alívio causando mutilações à sua volta… Este é o templo da inteligência! Profanais este sagrado recinto. Vencereis porque tendes convosco a força bruta. Mas não convencereis. Porque, para convencer, é necessário possuir o que vos falta: a razão e a justiça. O General Millán-Astray gostaria de criar uma nova Espanha, uma criação negativa, sem dúvida, de acordo com a sua própria imagem. E é por isso que gostaria de uma Espanha mutilada…”

Furioso, Millán gritou: “Morte à inteligência!” Numa tentativa de acalmar os ânimos, o poeta José María Pemán4 exclamou: “Não! Viva a inteligência! Morte aos maus intelectuais!”

O episódio mítico da História contemporânea espanhola, vinculado à guerra civil (1936-1939), é questionado e rebatido numa investigação por Severiano Delgado Cruz, bibliotecário da Universidade de Salamanca, asseverando que essas palavras foram, posteriormente, “construídas” pelo colunista Luis Portillo Pérez.

Severiano Delgado, que estuda a História local de Salamanca, há anos, é, no entanto, cauteloso. E declara ao jornal espanhol ABC, que prefere definir esse facto como um “mal-entendido histórico”, em vez de uma mentira. Relutante em relação a polémicas, ele também é categórico sobre o objectivo da sua pesquisa.

Miguel de Unamuno na Universidade de Salamanca, em 12 de Outubro de 1936. (ersilias.com)

Independentemente da veracidade ou da precisão histórica deste facto, não podemos negar que, após o final da Guerra Civil, em 1939, até a morte de Francisco Franco, em 1975, a Espanha viveu um regime de “Viva la Muerte” e de “Morte à Inteligência”. Foram milhares os perseguidos e, ainda hoje, não sabemos, ao certo, quantos morreram no conflito civil. Estima-se que meio milhão de pessoas. De facto, foram centenas os exilados, intelectuais, professores, filósofos, músicos, dramaturgos, poetas e cineastas, entre outros, dos quais me atrevo a mencionar apenas alguns: José Ferrater Mora, Max Aub, Ramón José Sender Garcés, Manuel de Falla, Luis Araquistáin, Jose García Lorca, Rafael Martínez Nadal, Luis Buñuel, Rafael Alberti, Pedro Salinas, Luis Cernuda e José Medina Echevarría. Com o fim da Guerra Civil, chegaram ao Chile milhares de espanhóis perseguidos pela ditadura de Franco. Muitos viajaram no “poético navio nerudiano”, SS Winnipeg, que desembarcou no porto de Valparaíso, a 3 de Setembro de 1939.

(QuatroV – youtube.com)

Não menos dura, foi a sobrevivência daqueles que optaram por não fugir e que foram retaliados, como Antonio Rodríguez y Rodríguez-Moñino, ou viveram amordaçados numa espécie de exílio interior, como Juan Gil-Albert ou Vicente Aleixandre, Prémio Nobel da Literatura, em 1977.

Não esquecendo o assassinato do dramaturgo Federico García Lorca, a primeira vítima do fascismo espanhol e a morte, entre outras, do poeta Miguel Hernández5, na cadeia, em 1942. Nem que as últimas execuções do franquismo foram concretizadas a 27 de Setembro de 1975!

A construção da Basílica de Santa Cruz do Vale dos Caídos, entre 1940 e 1958, foi o desejo do ditador Francisco Franco de criar um mausoléu. Uma obra em que centenas de presos políticos, que viviam em quartéis superlotados, trabalharam como escravos. O semanário Expresso (na edição de 29/03/24) referia-se a “um empreiteiro português que ajudou a edificar o Vale dos Caídos e lucrou com trabalho escravo”6.

Consciente da realidade herdade da Guerra Civil, Fernando Arrabal (poeta e dramaturgo, também cineasta) realizou, em 1971, um filme chamado precisamente “Viva la Muerte”. Nele, verte as suas experiências de infância, narrando o percurso de Fando, uma criança de dez anos, que tenta descobrir o motivo do desaparecimento do pai. Mais tarde, descobre que a sua mãe, uma católica fervorosa, foi quem denunciou o marido, porque ele era antifascista. Fando quer saber o que aconteceu com o seu pai, dividido entre sentimentos de amor e de ódio em relação à sua mãe, na esperança de encontrar o seu pai vivo.

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Notas:

(Direitos reservados)

1 – “Liberdade, Liberdade…” –  A estreia deste espectáculo foi no dia 19 de Abril, no Centro Cultural e de Investigação do Funchal (CCIF), na ilha da Madeira, podendo ainda ser assistido até ao próximo domingo (5 de Maio).

2 – Miguel de Unamuno y Jugo (1864–1936) ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol. É o principal representante espanhol do existencialismo cristão, sendo conhecido, principalmente, pela sua obra “O Sentimento Trágico da Vida”, que lhe valeu a condenação do Santo Ofício. Foi reitor da Universidade de Salamanca durante três vezes: a primeira em 1902 e a última, de 1931 até à sua demissão, em 22 de Outubro de 1936, por ordem do caudilho Francisco Franco. Passou os seus últimos dias de vida em prisão domiciliária.

3 – Efectivamente, o general Millán-Astray tinha perdido o braço direito e foi ferido, em quatro ocasiões, na Guerra de Marrocos. Em 1924, perde o braço esquerdo e, em 1926, o olho direito, ficando com a alcunha de “Glorioso Mutilado”.

José María Pemán (elconfidencial.com)

4 – José María Pemán y Pemartín (1897-1981) foi um escritor espanhol que cultivou todos os géneros literários, destacando-se como jornalista, dramaturgo e poeta. Foi um apoiante da ditadura franquista.

5 – O poeta Miguel Hernández morreu de tuberculose numa prisão em Alicante, a 28 de Março de 1942. Um tribunal marcial condenou-o à morte em 1940. E, embora o regime franquista tenha comutado a sua pena em troca de 30 anos de prisão, as condições da sua prisão eram mais implacáveis do que qualquer pelotão de fuzilamento.

O poeta Miguel Hernández. (eldiadezamora.es)

6 Na peça jornalística intitulada “O empreiteiro português que ajudou a edificar o Vale dos Caídos e lucrou com trabalho escravo”, da autoria de Gorka Castillo e publicada na edição (on-line) de 27 de Março de 2024 do Expresso, lemos: “Ainda há capítulos ocultos na tragédia da guerra civil espanhola e dos 40 anos de ditadura que se lhe seguiram. Quando ressurgem, fazem as delícias dos historiadores. Deve ter sido o caso de Xurxo Ayán, arqueólogo do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa; Luis Antonio Ruiz Casero, investigador da Universidade Complutense de Madrid; e a documentarista Márcia Hattori, do Instituto Espanhol de Ciências do Património, que reconstituíram a marca de um português esquivo e misterioso nas pedras do Vale dos Caídos.”

Manuel Rodríguez Crisogno “foi uma das personagens mais desconhecidas que participara na construção do monumento-santuário fascista entre 1943 e 1950”, asseguram os historiadores ao jornal Expresso. “Angariou uma fortuna dirigindo parte daquela obra e relacionou-se com as mais altas esferas do poder franquista até se lhe perder a pista, em 1963, em Madrid. Para nós, foi uma investigação apaixonante”, reconhecem os mesmos historiadores, que publicaram a sua investigação numa das revistas académicas mais prestigiadas da actualidade.

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02/05/2024

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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