Yuval Noah Harari: “Israel deve defender a sua humanidade”

 Yuval Noah Harari: “Israel deve defender a sua humanidade”

Huck e Harari: “Além da terrível guerra em si, estamos a experimentando uma perigosa guerra de narrativas”, diz o apresentador brasileiro. (Créditos fotográficos: Reprodução – oglobo.globo.com)

A asserção de que “Israel deve defender a sua humanidade” emerge em conversa de Yuval Harari com Luciano Huck (dois judeus) – no âmbito de um trabalho especial para o jornal O Globo, do Rio de Janeiro – publicada a 29 de outubro, em que é comentado o conflito entre Israel e Hamas, considerando que “a justiça não é meta alcançável, mas a paz é”.

Yuval Harari, historiador e filósofo, autor de “Sapiens: História Breve da Humanidade”, “Homo Deus” e “21 Lições para o Século XXI”, diz que Israelitas e Palestinianos estão, agora, incapazes de dialogar, o que redobra responsabilidade da comunidade internacional.

(Direitos reservados)

Huck, aos 13 anos, após o bar mitzvah (cerimónia de inserção do jovem como membro maduro na comunidade judaica), passou 45 dias a colher abacate no Bror Hayil, um kibutz (comunidade agrária), em Israel. Quando os filhos, que está a criar na tradição judaica, começaram a entender Mundo, visitaram Israel com o pai. Uma das primeiras paragens foi no Museu do Holocausto, em Jerusalém, para compreenderem a perseguição ao povo judeu, sobretudo na primeira metade do século XX, que culminou no extermínio de seis milhões de judeus na Europa – tragédia que levou os avós paternos à fuga dos seus países, chegando ao Brasil para reconstruírem as suas vidas.

Yuval Harari, historiador e filósofo. (oglobo.globo.com)

Harari nasceu em 1976, em Kiryat Ata, perto de Haifa, ao norte de Tel Aviv, e é uma das mentes brilhantes do tempo atual. Doutorado em História pela Universidade de Oxford e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, é autor de best-sellers que redefinem a perceção da História e o futuro da Humanidade. Os três livros, acima referidos, venderam milhões de exemplares e foram traduzidos para dezenas de idiomas.

Ambos os interlocutores compartilham a crença na coexistência pacífica entre a proteção do povo judeu e do Estado de Israel com a criação de um Estado palestiniano próspero e livre. Conheceram-se por acaso, num hotel no Sul da Itália, quando esperavam na fila do café da manhã, e construíram uma ponte de diálogo. Huck, sempre que precisa de esclarecer temas complexos, como na pandemia da covid-19, procura a visão de Harari para a compartilhar com o público do Brasil.

O entrevistado acede à ideia de que Huck está a conversar com todas as personagens indicadas: o garoto israelita, filho de Shlomo e Pnina, nascido e criado em Haifa; o filósofo e professor de Tel Aviv; o escritor; e o marido de Itzak, que tem família por todo o território de Israel.

(twitter.com/LucianoHuck)

Sustenta que a História, ao bater-nos à porta, postula que tenhamos perspetiva. E, desta vez a História, não só lhes bateu à porta, como “quebrou a porta e destruiu a casa”. Muitos amigos e familiares “acabaram de passar pelos eventos mais traumáticos das suas vidas, e ainda estão passando”. O escritor está com eles, mas tenta manter uma perspetiva histórica e filosófica do que está a acontecer. Porém, como está pessoalmente envolvido nos eventos, não consegue ser objetivo agora. Apresenta claramente o lado mais israelita do que está a acontecer. Por isso, apela às pessoas que queiram ter perspetiva mais ampla sobre os factos, que leiam alguma entrevista com alguém compassivo e conhecedor do que está a acontecer no lado palestiniano, porque “isto é algo que não pode representar”, por não ter “o conhecimento nem a autoridade”.

Aponta que uns tios seus vivem numa das comunidades que foram ocupadas e destruídas pelo Hamas, a 7 de outubro, que se esconderam em casa durante mais de um dia, enquanto os terroristas iam de casa em casa, na vila, e “torturavam e executavam pessoas das formas mais horrendas”. E o impressionante foi, não só rol das atrocidades do Hamas, mas também o facto que pretenderem que as atrocidades fossem divulgadas, inclusive transportando câmaras, fotos e vídeos. As pessoas cometem atrocidades em vários lugares do Mundo, mas tentam escondê-las, ao passo que o Hamas quis divulgá-las, pois “não desejava apenas matar civis”, mas “matar qualquer chance de paz”, agora e no futuro, para “espalhar a semente do ódio nas mentes de milhões de pessoas”.

Esta imagem de vídeo mostra um elemento do Hamas levando um refém, após invasão a “rave”. (Créditos de imagem: South First Responders / AFP – correiobraziliense.com.br)

Para compreender isso, é de atender ao grande contexto geopolítico. A escolha do 7 de outubro deve-se ao facto de Israel e a Arábia Saudita estarem prestes a assinar um tratado de paz histórico para normalizar as relações entre Israel e a maior parte do mundo árabe e reiniciar o processo de paz entre Israel e Palestina, dando concessões imediatas que aliviariam o sofrimento dos Palestinianos com a ocupação israelita, o que representava enorme ameaça para o Hamas e para o Irão, que se opunham a qualquer tentativa de paz na região. Por isso, “o Hamas atacou”.

(twitter.com/LucianoHuck)

Harari diz ouvir muitas pessoas em diferentes países a falar dos direitos dos Palestinianos e da necessidade de libertar a Palestina, com o que está de acordo em absoluto. Há anos que é um crítico veemente de Netanyahu, por não ter feito nenhum esforço para chegar a um tratado de paz com os Palestinianos. Porém, o Hamas não pretende fazer nenhum tipo de concessão para que Israelitas e Palestinianos vivam lado a lado. O objetivo é destruir as possibilidades de paz.

Israelitas e Palestinianos estão a sofrer profundamente. O israelita médio e o palestiniano médio têm a mente “completamente cheia de dor”. Quem tentar falar a Israel da dor dos civis em Gaza é tido como traidor, tal como o será, se quiser falar do mesmo flagelo de Israel em Gaza.

Por isso o trabalho de quem é de fora “é prestar atenção à complexidade da realidade”. Com efeito, pessoas que não estão imersas neste oceano de dor não deveriam ser preguiçosas intelectualmente, nem emocionalmente. Escolher um lado desta realidade complexa e pensar “tudo bem, eles são 100% puros, bons e certos e nunca fazem nada de errado, e o outro lado, eles são 100% maus, tudo é por causa deles, eles têm culpa por tudo” – “isso é intelectual e emocionalmente preguiçoso e não contribui para a paz”. Os Israelitas e os Palestinianos estão incapazes, psicologicamente, de manter o espaço para a paz. Quem está de fora é que precisa de o fazer. Como na maioria dos casos na História, a culpa é de ambos os lados. Em grandes conflitos, “pessoas e nações podem ser vítimas e algozes ao mesmo tempo”.

(twitter.com/LucianoHuck)

Sobre a ajuda da comunidade internacional, Harari sustenta que os princípios deveriam ser, antes de mais, distinguir entre Hamas e população palestiniana. O Hamas é uma organização terrorista que nunca se interessou pela paz. Cada vez que Israel se aproxima de um acordo de paz, como no processo de Oslo, na década de 1990 e no início de 2000, o Hamas fez tudo para sabotar. Mas os Palestinianos não são o Hamas. Muitos deles apoiam o Hamas, mas não é a mesma coisa. Israel tem todo o direito e dever de proteger os seus cidadãos e de desarmar o Hamas, pois, “enquanto o Hamas for uma organização poderosa e armada, não haverá paz”. Ao mesmo tempo, “Israel precisa respeitar os direitos humanos básicos dos civis palestinianos e entender que o objetivo não deve ser apenas desarmar o Hamas, mas criar condições que permitam aos civis palestinianos viver vidas dignas e pacíficas no seu país”.

Da responsabilidade do populismo de Netanyahu pelo que está a acontecer em Israel, sustenta que “Netanyahu e o seu governo não são culpados do ataque do Hamas”, mas partilham enorme responsabilidade pela atual disfunção do Estado israelita: as forças de segurança e muitas outras instituições governamentais não funcionam bem; Netanyahu construiu a sua carreira política dividindo a nação contra si mesma; atacou e enfraqueceu toda instituição, inclusive estatal e militar, que se pudesse opor à sua política; atacou as elites do funcionalismo como traidoras do Estado e nomeou, sistematicamente, pessoas para cargos-chave com base na lealdade política, independentemente das qualificações. É como se térmitas comessem o Estado por dentro. É um alerta para todas as democracias.

(Créditos fotográficos: Getty Images – linkedin.com)

Interpelado sobre a possibilidade surgirem novas lideranças em Israel e entre os Palestinianos, diz não poder comentar sobre o lado palestiniano. Porém, em Israel, enquanto se assiste à disfunção do Estado, surgiu incrível espírito de voluntariado na sociedade civil. Muitas organizações criadas para se opor a Netanyahu concentram-se na ajuda a sobreviventes e refugiados, preenchendo lacunas do governo. Tem, pois, esperança de que dessa mobilização surja uma nova geração de liderança política e de organização política. Contudo, não basta Israel vencer a guerra contra o Hamas, mas tem de vencer o seu conflito interno para dele emergir mais democrático, mais unido e mais disposto a explorar a paz com os Palestinianos. Se Israel vencer a guerra contra o Hamas, mas o poder ficar nas mãos de populistas e o país se tornar mais racista, mais extremista e mais fanático, a vitória será de curta duração.

Confrontado com a sua afirmação de, há dez anos, de que a Humanidade estava a viver “o momento mais pacífico da sua História”, não passa em silêncio sobre os problemas e conflitos. Porém, comparado com épocas anteriores, o Mundo “era o mais pacífico de todos os tempos”. Assim, mais pessoas morriam por comerem demais do que pela violência humana. Foi a conquista da ordem liberal global, com problemas, todavia melhor do que qualquer alternativa. Esta ordem baseou-se na ideia de que todos os humanos são basicamente iguais. Todos pertencem à mesma espécie biológica, sentem dor, amam os filhos e os pais. Assim, “como temos alguns interesses e valores comuns, podemos construir uma ordem global, com base no reconhecimento desses valores e interesses universais”. A razão pela qual o Mundo estava bastante pacífico, não foi porque as leis da natureza foram alteradas, mas porque “os humanos trabalharam arduamente, durante gerações, para construir uma ordem internacional funcional”.

(threads.net/@lucianohuck)

Depois, esta ordem liberal global teve ataques de pessoas de fora dela, como Vladimir Putin, Kim Jong-un (líder político norte-coreano) ou o Irão, e de dentro do Ocidente liberal, com o Brexit, com Donald Trump, nos Estados Unidos da América. Houve, pois, “um ataque sistemático à ordem global”. E, quando se ataca a ordem, obtém-se desordem. Há um padrão de conflito e de violência crescentes. O exemplo mais óbvio, mas não único é a invasão russa da Ucrânia. Alguns países que estiveram na vanguarda da construção da ordem global escolheram líderes que atacaram os valores da ordem liberal e as instituições globais. Podiam discutir os valores e interesses da ordem liberal global e apresentar uma alternativa, mas “atacaram a ordem global existente e não ofereceram nada em seu lugar”. Puseram a grandeza do seu país acima de tudo.

(curso-objetivo.br)

Reconhece a legitimidade de as pessoas se preocuparem com o sofrimento dos civis palestinianos em Gaza, mas não a de apoiarem o extermínio do Estado de Israel ou a violência contra os judeus no Mundo. Porém, é preponderante a ideia simplista e binária de que toda a bondade está de um lado e de que todo o mal está do outro. “Isso é preguiça intelectual e emocional”. Com efeito, podemos ser a favor da proteção dos direitos humanos dos Palestinianos e do estabelecimento do Estado palestiniano e ser a favor da proteção do Estado de Israel e dos seus cidadãos.

Cantar “do rio ao mar, a Palestina será livre” devia levar as pessoas a interrogarem-se onde estará Israel, se a Palestina ocupar todo o território entre o Jordão e o mar. Não vale apoiar “a aniquilação do Estado de Israel e dos milhões de Judeus que lá vivem”. Apoiar um Estado palestiniano é compatível com a condenação da tortura e do assassinato de civis nas suas casas.

O advogado e pacifista indiano Mahatma Gandhi avisava que aplicar o princípio de “olho por olho” levará a que todos fiquem cegos. E é o que sucede na região. Quando centenas de milhares de palestinianos perderam as casas, em 1948, os países árabes retaliaram e expulsaram centenas de milhares de judeus de suas casas e o Estado tomou-lhes as propriedades.

(curso-objetivo.br)

Tenta-se salvar o passado, mas não se pode recuar no tempo. Por isso, deve-se “olhar para o futuro” e ver como “evitar a continuação de atrocidades e de crimes”. A ideia da justiça absoluta só “garante uma guerra sem fim”, pois “não houve um único tratado de paz em toda a História da Humanidade que proporcionou justiça absoluta”. E, não havendo cautela, o conflito pode passar de Gaza para a Cisjordânia, para o Líbano, com o Hezbollah, para toda a região e estar iminente o uso de armas nucleares, pela primeira vez, desde 1945. A prioridade é desescalar. Para tanto, são precisos gestos concretos, não só palavras. E o passo óbvio é o Hamas libertar os reféns que capturou. Isso permitirá “respirar e dar sanidade à situação”.

***

Visão equilibrada, embora com pendor compreensível pró-israelita. Israel tem de fazer a sua parte.

.

06/11/2023

Siga-nos:
fb-share-icon

Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

Outros artigos

Share
Instagram