Ainda sobre o 10 de Junho: luz e sombra

Peça “Babel”, a partir de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões. (© José Caldeira – tnsj.pt)
Nada mais gratificante, neste dia (10 de Junho), do que ir ao teatro e assistir a um espectáculo inspirado na obra “Babel”, com base na escrita de Camões, cuja última encenação é da responsabilidade de Nuno Cardoso, para o Teatro Nacional São João (TNSJ).
“Babel” é uma proposta que se insere num género de teatro comunitário: no palco, três actores profissionais partilham, em cena, experiências de vida e de “personas” com um grupo de 15 actores não-profissionais.

Como nos informa a folha de sala relativa a este espectáculo do TNSJ: “Estamos num terminal de autocarros. Lugar de fim ou de princípio das possibilidades? Neste lugar de espera (e não é também isso o teatro?), dezasseis pessoas olham-se. Apresentam-se tanto a si próprias como às suas personagens, contam histórias sobre si, sobre o estado do (seu) mundo, enquanto a hora de partida não chega. Para onde vão, o que esperam? Nuno Cardoso reúne um elenco diverso, composto por catorze pessoas da comunidade, dois atores e seis jovens músicos. ‘Babel’ parte de ‘Os Lusíadas’ enquanto parábola, inspirando-se na estrutura do texto matricial de Camões para construir um percurso pela Cidade e pela portugalidade em várias estações. Que lusíadas somos, hoje? Como olhamos o outro? ‘Babel’ é uma viagem, simbólica e inquisitiva, pela língua e pela identidade portuguesas, [em que] se questionam as nossas fra[c]turas, os nossos Velhos do Restelo, os nossos Adamastores. Mas onde também se proje[c]ta uma ideia de futuro, diversidade e pertença, de que ‘Babel’ é afinal um espelho.”

Se as referências bíblicas à Torre de Babel podem estar presentes, não deixa de ser interessante notar como a sociedade portuguesa e, especialmente, a portuense, mudou e evoluiu nestes últimos 50 anos. A presença de novos grupos e de novas nacionalidades são o fruto herdado de uma aventura que se iniciou com os Descobrimentos. E, para o bem ou para o mal, a sociedade actual é filha dessa aventura! Não é difícil encontrar em Camões e na sua vasta obra a inspiração literária na qual este espectáculo se apoia, com referências explícitas: “[…] à glória de mandar! à vã cobiça, desta vaidade que chamamos fama! […] Estavas, linda Inês, posta em sossego […]”
A realidade desta “Babel” está tão próxima de nós e do edifício do TNSJ que estas cercanias não podem ser evitadas. Nas traseiras do TNSJ – Rua do Cimo da Vila e Rua do Loureiro –, aí mesmo, estão as comunidades às quais o espectáculo também faz menção e referências!

A acção teatral desenvolve-se na troca de diálogos entre as personagens. Há momentos corais, com o Hino Nacional em acordes dissonantes, até lograr, no fim, a harmonia correcta. Há, igualmente, momentos confessionais, quando os actores trocam opiniões sobre as suas personagens e acerca dos momentos de elogio e de amor dirigidos aos seres queridos, alguns deles na plateia do teatro. Foi muito reconfortante, para mim, voltar a ver a actriz Rosa Quiroga no palco do Carlos Alberto. Esta actriz muito deu, na sua carreira, ao teatro do Porto. Destaco ainda a sentida homenagem que ela prestou, no seu depoimento, a Paulo Eduardo Carvalho, um jovem homem de teatro que nos deixou tão cedo!
Se a Babel1 bíblica foi um castigo divino (?), podemos encarar este momento iniciático na construção das civilizações que, nas suas línguas, construíram e povoaram territórios distintos que os diferenciaram.
Luminoso foi o momento do discurso de Lídia Jorge, na cerimónia comemorativa do Dia de Portugal (10 de Junho): “O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade, cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou” […] “Sagres passou para a História e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo. Mas existe uma outra perspetiva – e hoje em dia o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. Lagos oferece às populações a[c]tuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.”

Relativamente à sombra, registo os momentos sombrios dos insultos ao sheik David Munir (imã da Mesquita Central de Lisboa) durante a cerimónia de homenagem aos ex-combatentes do Ultramar, no mesmo dia em que o actor Adérito Lopes foi alvo de uma agressão violenta em Lisboa, pouco tempo antes de subir ao palco, para interpretar a peça “Amor é fogo que arde sem se ver”. O incidente ocorreu quando faltava menos de uma hora para iniciar o aludido espectáculo, na zona do Largo de Santos, junto à sala Cinearte, onde decorreria a representação.
Não posso deixar de lembrar a perseguição que as ditaduras latino-americanas exerceram contra os actores no Chile, no Uruguai e na Argentina, especificamente, a triple AAA2. É lamentável que isto aconteça numa democracia.

Enquanto escrevo este artigo, tenho conhecimento da morte do padre Martins Júnior. Como regista a publicação digital Esquerda (esquerda.net): “A Igreja suspendeu-o durante 42 anos, mas o povo do Machico esteve sempre com ele. ”O Bloco de Esquerda da Região Autónoma da Madeira lembra que o padre Martins Júnior “escolheu a palavra livre como forma de resistência e solidariedade”, sendo “um nome marcante na construção de uma consciência social crítica e atenta na Madeira” e “nunca se deixando domesticar pelas conveniências”.
Cruzámo-nos muitas vezes, nos cinco anos em que vivi e trabalhei na Madeira, apesar de não termos sido amigos próximos, sempre tive por ele uma profunda simpatia e admiração pela sua coragem e pela sua obra junto dos mais desfavorecidos da ilha. Com certeza, a hipocrisia governante lhe prestará falsas homenagens!
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Notas:
1 – Como nos diz a Wikipédia, a narrativa da Torre de Babel é o mito fundador que explica a razão de existirem diferentes línguas. De acordo com a narrativa, em Génesis 11:1–9, a Humanidade unida nas gerações seguintes ao Dilúvio, falando uma única língua e migrando para o Leste, chega à terra de Sinar. Lá, eles concordam em construir uma cidade e uma torre alta o suficiente para alcançar o céu. Deus, observando a cidade e a torre, confunde a sua fala para que não se entendam, e espalha-os pelo Mundo.

2 – Alianza Anticomunista Argentina (AAA), também conhecida como triple A, operou impunemente, na Argentina, nos anos de 1973-1976. Foi uma organização terrorista parapolicial apoiada pela ditadura.
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Nota da Redacção:
1 – Pode complementar a leitura do presente artigo de Roberto Merino com a leitura do artigo de Soares Novais intitulado “Padre Martins Júnior (1938-2025): um homem livre na ilha sitiada”, publicado na edição de hoje do sinalAberto.
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19/06/2025