O expoente máximo do ódio
(unric.org)
As agressões neonazis recentemente registadas – dirigidas a profissionais de saúde voluntários no apoio a pessoas em situação de sem-abrigo e a agentes culturais – não são episódios isolados de brutalidade. São o culminar de um processo social e mediático, alimentado por anos de indiferença, de normalização e de uma cumplicidade silenciosa, que se expressa tanto nas omissões como nas plataformas que amplificam discursos de exclusão. Estes ataques são, em simultâneo, uma agressão ao gesto solidário e aos corpos vulneráveis. São, acima de tudo, uma mensagem política clara, segundo a qual devemos desestabilizar a cultura, com as suas dimensões crítica e plural, e erradicar os despossuídos, a par da fantasia meritocrática de uma sociedade justa.

Entendida para lá da sua vertente artística ou patrimonial, a cultura é, como nos lembra Edward Said, “o lugar onde a sociedade se interroga a si própria”. É a prática coletiva do cuidado, do reconhecimento mútuo e da denúncia das assimetrias de poder. Atacar quem se compromete com os valores do cuidado e da justiça é, portanto, atacar a própria possibilidade de cultura, enquanto espaço de resistência humanizante. Bibliotecas comunitárias, centros culturais alternativos e grupos de voluntariado tornam-se alvos não por acaso, mas por oferecerem exatamente aquilo que os extremismos mais temem: a capacidade de imaginar o mundo de outra forma; a polissemia que o totalitarismo procura obliterar.
As pessoas em situação de sem-abrigo, por seu lado, não são apenas vítimas por serem pobres. São alvo destes movimentos por corporizarem, na sua ótica, o falhanço de um modelo económico e moral que prefere esconder a miséria a enfrentá-la. São, na boca dos extremistas neonazis, o “lixo humano” que a modernidade tardia tenta varrer da paisagem social. Estes movimentos não pretendem resolver a sua condição, mas, antes, erradicar a sua presença: “Se não os virmos, não existem. Problema resolvido.” Quando os agressores se voltam contra quem cuida, visam os corpos vulneráveis e as pontes de solidariedade que os mantêm ligados à comunidade. A violência é dupla: destrói o alvo imediato e desencoraja futuras ações de empatia e de envolvimento cívico.

A literatura científica tem sido clara: o discurso de ódio é o “estado zero” do crime de ódio. Quando certos grupos passam a ser descritos sistematicamente como “vermes”, “invasores” ou “ameaças”, o salto do discurso para a violência é uma consequência natural. O ódio não começa com socos nem com facadas, mas com memes irónicos, piadas normalizadoras, títulos de jornais enviesados e um espaço público que abandona a sua vocação democrática.

Neste processo, os meios de comunicação social desempenharam – e continuam a desempenhar, diga-se com firmeza – um papel crucial. A ascensão do Chega, partido que capitaliza o ressentimento social e o medo do outro, deu-se no interior do sistema mediático e não à sua margem. Durante anos, figuras extremistas foram promovidas em horário nobre, apresentadas como “vozes do povo” ou “políticos anti-sistema”, sem qualquer escrutínio crítico proporcional. Esta exposição mediática desproporcionada, tantas vezes descontextualizada e acrítica, serviu como megafone para ideias outrora marginais, que assim adquiriram uma aparência de legitimidade e de inevitabilidade. A máquina mediática, na ânsia do espetáculo e da audiência, ajudou a construir o palanque a partir do qual hoje se lançam as palavras que precedem os atos de ódio.

Importa realçar que a responsabilidade não está apenas em quem profere o ódio, mas também em quem lhe oferece o microfone, o tempo de antena e a moldura de legitimidade. Quando a visibilidade se transforma em validação, os discursos outrora impensáveis tornam-se lugar-comum, e a exceção converte-se em regra. A cobertura sensacionalista, desprovida de contexto e contraditório, não informa – normaliza. E, ao fazê-lo, abre caminho para que a linguagem da exclusão transite, sem sobressalto, para a violência concreta que hoje se materializa nas ruas.
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Nota do Director:
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26/06/2025