O espírito da multidão digital: Le Bon e o caso Charlie Kirk
(Créditos de imagem: Gerd Altmann – Pixabay)
Alguns clássicos ajudam-nos a entender o presente com uma clareza extraordinária. Vale a pena, por isso, recuperar Gustave Le Bon, médico e psicólogo francês do século XIX, que antecipou o que vemos acontecer todos os dias nas redes sociais. Na sua obra seminal “A Psicologia das Multidões” (de 1895), o autor mostra-nos como, ao integrar uma massa – física ou virtual –, as pessoas deixam de pensar por si: perdem o senso crítico, são levadas pela emoção e passam a agir por contágio, instinto e sugestão. O “eu racional” desfaz-se num “nós impulsivo”. Foi feito há mais de um século, mas este diagnóstico mantém-se inquietantemente atual.

Imbuído do espírito parisiense dos finais do século XIX, Le Bon observou um fenómeno perturbador: a multidão não pensa, reage; não pondera, envolve-se. Quando fundido no coletivo, o indivíduo perde o juízo próprio e integra um corpo único, guiado por um “espírito coletivo” volátil e intolerante. A moral torna-se binária: certo ou errado, nós ou eles. E essa força, avassaladora e fácil de manipular, ressuscita hoje nas plataformas digitais.
Plataformas como X, Facebook ou TikTok configuram-se como “multidões digitais”, em que o contágio emocional, a polarização e a irracionalidade se sobrepõem ao debate crítico. Sensações como medo, indignação ou entusiasmo provocam reações imediatas, enquanto algoritmos privilegiam conteúdos que geram envolvimento afetivo, propagando ideias de forma viral. O palco deixou de ser a praça pública – é agora o feed. E o “espírito da multidão” não desapareceu: foi turbinado pela cultura algorítmica.

É precisamente neste novo palco, emocional, veloz e algorítmico, que emergem figuras como Charlie Kirk – a personagem enunciada no título deste texto. Para quem não o conhece, trata-se de um influente ativista conservador norte-americano, fundador do movimento Turning Point USA, cuja atuação ilustra com rigor quase didático o que Le Bon descreveu como o poder de um líder de massa: alguém que sabe mobilizar afetos, explorar impulsos e transformar seguidores dispersos numa multidão unificada. O seu método sistematiza-se em três atos:

- Provocação dirigida: Kirk escolhe como alvos interlocutores com marcadores identitários já estigmatizados pelo seu público – pessoas transgénero, mulheres com visual alternativo ou homens com aparência “não normativa”. Com isso, ativa o preconceito latente e prepara emocionalmente a multidão para rejeitar sem escutar.
- Manipulação simbólica: em vez de promover um diálogo real, Kirk cria um espetáculo de humilhação pública, onde a razão é suprimida pela performance e o outro serve apenas como antagonista num duelo emocional.
- Edição estratégica: os vídeos que circulam depois são cuidadosamente editados para reforçar estereótipos e alimentar uma moralidade simplificada. De um lado, Kirk como herói racional e firme; do outro, o oponente emocional e incoerente.
O produto final são vídeos curtos, polarizadores e altamente partilháveis, perfeitos para a lógica da repetição e contágio das redes.
Kirk não só compreende a psicologia da multidão, como a instrumentaliza com precisão cirúrgica, recorrendo à estética da performance digital, para cristalizar identidades e reforçar bolhas ideológicas. É encenada uma guerra de valores na qual não há espaço para o contraditório – apenas para aplausos ou para apedrejamentos virtuais. Vemos também a exaltação do líder carismático, conforme descrito por Le Bon: alguém que, ao tocar as emoções certas, mobiliza a adesão acrítica da multidão. De acordo com a tese do autor, os vídeos, breves e impactantes, operam como os slogans e “imagens fortes”, instrumentos perfeitos para suscitar crença imediata e ação emocional. O feed substitui a praça pública, mas o comportamento é o mesmo: a multidão aplaude, insulta, adere, sem ponderação nem reflexão.

Este caso não retrata somente uma manipulação pontual: é a prova de como a psicologia das multidões, na era digital, corrói as bases do espaço público. Quando o indivíduo abdica do juízo crítico e a multidão pensa por ele, a razão cede ao instinto coletivo. A escuta, a empatia e o dissenso construtivo enfraquecem, enquanto a intolerância e o culto da força crescem nos feeds.
Le Bon avisou-nos há mais de um século. Se não enfrentarmos estas dinâmicas, a democracia arrisca-se a ser subjugada pelos piores impulsos da multidão – ontem nas praças, hoje nos ecrãs. Regressar a este clássico não é um exercício académico: é um mapa de navegação para um tempo onde o “nós impulsivo” ameaça devorar o “eu racional”.
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03/07/2025