Crónica de um aeroporto qualquer

 Crónica de um aeroporto qualquer

(© Marco Dias Roque)

Cada aeroporto é um país. Mais do que isso, cada aeroporto é um universo paralelo, uma bolha de realidade cuja fronteira é controlada, primeiro, pelas pessoas que fazem o check-in. Detrás de divisórias de plástico, no fim de labirintos feitos de fitas, às quais damos o poder de uma parede, lá estão eles, soberanos de balcão, para decidir se a nossa mala – e o nosso destino – estão à altura. Reis e senhores do primeiro portal mágico, são júri e juiz com um poder muito específico: o de pesar a bagagem.

Na mitologia egípcia, Anúbis, deus dos mortos, pesava o coração de cada pessoa contra uma pena. Se o coração fosse mais leve, o lugar no paraíso era garantido. Se não, lá teria a alma de ir na direção oposta. No aeroporto, se a mala pesa mais do que devia, a alma escapa, mas arrasta a vergonha. Uma pessoa tem de sair da fila, abrir a mala, expor a intimidade para vestir roupa ou meter na mochila o suficiente para poder passar. Um problema que não tive na última vez que viajei. A senhora pesou a mala e decidiu ser empática. “Está a viajar leve, hoje,” disse. “É só uns dias, por trabalho,” respondi. “Oh, nããããão!”, foi o sentimento que partilhou. Totalmente de acordo, filha, mas nem todos os que viajam em Junho podem ir de férias.

(Créditos fotográficos: Edwin Petrus – Unsplash)

O próximo portal é, pelo menos para mim, o mais temido: o da segurança. Raios-X, sapatos fora ou não – há sempre um nervosismo latente nesta travessia. Felizmente, os aeroportos britânicos começam a permitir a passagem sem tirar nada da bagagem de mão, mas isso também cria confusão. “Tiro ou não tiro,” pensava eu, enquanto um casal à minha frente passava por uma crise mais profunda, uma vez que a mochila deles era tão grande que não cabia na máquina. “Agora como é que passamos isto?”, questionavam os guardas, com as pessoas a olharem para eles meio perdidas. Por sorte, consegui passar para outra fila. É quase um ritual. Colocamos os nossos bens terrestres nas bandejas de plástico e passamos pelo arco da purificação. A pergunta de sempre: “Leva cinto?” “Não” e passei sem apitar. Caso tivesse apitado, lá viria um senhor com um papel que me passaria pelas mãos para submeter a uma análise que nunca dá em nada. Ninguém sabe bem os mistérios por detrás destes sistemas, porque apitam uns e não outros. O importante é seguir em frente.

(Créditos fotográficos: Irham Sahbana – Unsplash)

É já depois do controlo de segurança que entramos nessa bolha de realidade alternativa, onde todas as partes de um dia – manhã, tarde, noite – acontecem ao mesmo tempo. Passado o duty free – esse ministério da economia paralela – ouço algo que não se ouviria na rua. “Sim, estou bem, mas não estou habituada a ter roupa posta tanto tempo,” diz uma senhora americana mais avantajada à amiga, enquanto descem na escada rolante. Riem-se. O aeroporto é um espaço de liberdade. Embora já tenha ouvido mais do que gostaria, não consigo evitar escutar as conversas alheias. Como diz a canção dos GNR:  “Efectivamente escuto as conversas / Importantes ou ambíguas / Aparentemente sem moralizar […]”  Mas moralizo, claro. O que mais me fascina é ver as pessoas na zona da comida: para uns é pequeno-almoço, para outros jantar, tudo é permitido. É um mundo estranho, diferente da realidade, mas com regras próprias. O aeroporto é o único sítio onde se pode pedir uma cerveja às sete da manhã sem que ninguém nos julgue. Infelizmente, isso só se reserva para férias; em viagens de trabalho não dá.

(Créditos fotográficos: Utari Adam – Unsplash)

Sento-me para tomar o pequeno-almoço e analisar um menu vítima de uma inflação desmedida. Quando as pessoas têm opções limitadas, o capitalismo aproveita. Os preços dão medo, mas, pelo menos, o serviço é rápido. Na mesa ao lado, estão dois senhores ingleses com o jeito nervoso de companheiros de trabalho que se vêem obrigados a fazer conversa fora do escritório. O guião habitual: táxis, colegas, trabalho e o que os espera no destino. “É pá, quase não vim, quando vi os bilhetes eram 200 libras e quando fui comprar já eram quase 600,” diz um. “Sim, sim,” avança o outro, “vai ser uma viagem cara, eh, eh, eh…” Imagino se os CEO e as pessoas que viajam em primeira classe se preocupam com coisas assim. O tema esgota-se rapidamente e eles começam a ficar nervosos quando o empregado não chega com a conta. Felizmente, uma chamada telefónica salva-os. “Sim, estou no aeroporto, mas diga,” diz o que atende, enquanto o outro finge não ouvir. É a hora de pagar e de me dirigir à porta de embarque.

Na hora de embarcar, as questões de classe social atormentam-me. Todos sabemos que quem tem mais dinheiro, tem mais poder, mas isso nunca é tão óbvio como num avião, por muito que se tente esconder. Vejamos os nomes das categorias da British Airways, por exemplo, onde se tenta que todos se sintam especiais: Economia aparece no bilhete como Euro ou World Traveller, Economia Premium é World Traveller Plus, Business é Club Europe ou World, e Club Suite e, finalmente, apenas Primeira Classe. Tantos nomes para dividir quem pode pagar mais por um bocadinho de conforto. E depois, claro, a ordem de entrada. Grupo 1, 2, 3, 4 em tentativas de controlar o fluxo que pouco faz para que as pessoas não façam fila. Entrei com o grupo 2 e sentei-me. Não vou falar muito do voo. Porém, logo nos primeiros cinco minutos, o rapaz no banco ao lado já tinha tirado as sapatilhas. Por isso, podem imaginar como correu. Num avião, estamos todos uns em cima dos outros, mas, para alguns, é como se estivessem sozinhos. É a dualidade humana: quanto menos espaço há, mais individualistas nos tornamos.

(Créditos de imagem: flybondi – aeroin.net)

Chegados ao destino, neste caso Madrid, com uma aproximação e aterragem algo atribuladas – com direito a que pessoas se sintam mal –, chegamos ao momento da verdade. Depois de horas na bolha única, chegamos ao portal final: a verificação do passaporte e o direito de entrar no país. O pré-regresso à realidade. Longe vão os tempos em que polícias taciturnos olhavam para os passaportes e questionavam as nossas motivações. Hoje, é tudo mais automático, com máquinas que fazem a maioria do trabalho. Mesmo assim, não se evitam filas e o aeroporto de Barajas tinha uma gigante. Felizmente, os cidadãos da União Europeia tinham fila própria, o que me ajudou a cruzar este labirinto final com rapidez. Entro na última porta, ponho o passaporte no leitor e, passado um par de minutos, salta um erro no ecrã. Caldo entornado e último passo abortado.

Vista do mirador de Paracuellos del Jarama. Ao fundo, o norte da cidade de Madrid, com os seus característicos arranha-céus. Em frente, o Aeroporto de Madrid-Barajas. (pt.wikipedia.org)

Começo a sair e pergunto à pessoa encarregue para onde tenho de ir. Ela olha para mim e pergunta: “Passaporte português?” “Sim,” respondo. “Então, volta para a máquina.” Entro de novo, ela entra na do lado, tira o meu passaporte e coloca-o no leitor. O erro volta a aparecer. Eu faço um olhar como quem comenta: “Vês, eu bem disse!” Ela responde com um olhar de “espera, que já aprendes”.  O erro aparece outra vez e ela não retira o passaporte. Momentos de tensão até que, magicamente, o erro desaparece e a porta abre. Ela devolve-me o passaporte e volta para ajudar os seguintes. Quem sabe… sabe. Caminho mais leve até à recolha de bagagem – mais uma odisseia conquistada sem grandes sobressaltos. Outro passeio por um mundo surreal que aceitamos como normal. Um universo de normas próprias e de pequenos deuses de uniforme ou com coletes amarelos. Saio pela porta automática.

Na rua, as regras do mundo real reafirmam-se. O tempo volta a fazer sentido. E já ninguém quer saber quanto pesa a tua mala.

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03/07/2025

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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