E se Sócrates fosse simpático? Bourdieu responde-nos

 E se Sócrates fosse simpático? Bourdieu responde-nos

Pierre Bourdieu (thecollector.com)

Ao longo dos últimos anos, temos assistido à erosão de um dos pilares fundamentais da democracia: o jornalismo. Não apenas pela precarização crescente das redações, mas também por uma tendência mais insidiosa – a personalização do olhar jornalístico, em que simpatias e antipatias pessoais toldam a análise crítica e o compromisso com a missão informativa. É sob esta lente que deve ser interpretado o “abandono” a José Sócrates por parte de alguns órgãos de comunicação. A frase seguinte, que não escondia um certo tom jocoso, fez o seu caminho com sucesso: “Jornalistas deixaram José Sócrates a falar sozinho.” Não por imperativos éticos, investigativos ou políticos, mas – pasme-se – pela forma como o antigo primeiro-ministro lhes dirigia a palavra.

José Sócrates (commons.wikimedia.org)

Ora, este comportamento está nos antípodas da função democrática do jornalismo – e não apenas por exigência deontológica. Como nos lembra Pierre Bourdieu, em “Sobre a Televisão”, “a televisão pode tornar-se um instrumento de opressão simbólica se os jornalistas se deixarem governar por critérios de audiência ou simpatia em vez de critérios de verdade”. O jornalista, na sua função pública, deve ser um agente de vigilância crítica, insensível à validação pessoal, especialmente quando o interlocutor se revela hostil ou arrogante. A profissão exige estoicismo; não suscetibilidade.

É certo que José Sócrates terá sido, por vezes, autoritário, altivo ou, até, condescendente no trato com jornalistas – como tantos líderes o são, sem que isso justifique, em democracia, a sua exclusão do radar mediático. Sabemos também que a tarefa da imprensa é, por definição, desconfortável. Mas informar, investigar e escrutinar nunca devem estar dependentes do tom de voz, do nível de cordialidade ou da afinidade pessoal com o entrevistado. Pelo contrário: é precisamente quando o poder se fecha, se irrita ou se esquiva que o jornalismo deve redobrar o seu esforço de esclarecimento. Recuar perante o confronto é, nesse contexto, uma capitulação ética.

(literatureseweb.wordpress.com)

A lógica segundo a qual se deixa de acompanhar uma figura pública por esta ser “difícil” de lidar revela uma perigosa infantilização da prática jornalística. Mais grave ainda, introduz um viés profundamente antidemocrático: estarão os media condenados a privilegiar apenas os políticos “simpáticos”, “apresentáveis” ou “media friendly”?

Voltemos a Bourdieu. No seu diagnóstico implacável sobre a mediatização do campo jornalístico, advertia para o risco de uma imprensa rendida à lógica do espetáculo, em que “o essencial é o impacto visual ou emocional” e em que se privilegia a encenação em detrimento do conteúdo. O jornalismo, nesse modelo, converte-se num jogo de preferências e de afinidades pessoais, deixando de ser um exercício de verdade para se tornar numa dramaturgia de afetos. O resultado é um vazio informativo que apenas serve os interesses dos mais poderosos –  precisamente aqueles que os media devem vigiar.

(Direitos reservados – linkedin.com)

Esta situação ilustra, com clareza perturbadora, toda uma dinâmica. Não estamos a falar de absolver o antigo primeiro-ministro de críticas ou de suspeitas: trata-se, isso sim, de recusar que o tratamento jornalístico a seu respeito seja motivado por razões temperamentais e não por critérios de natureza editorial. Mesmo na era dos likes, o jornalismo não existe para gostar ou para desgostar – se assim for, deixa de ser jornalismo.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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17/07/2025

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Lourenço Ferreira

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Lourenço Ferreira é mestrando em Comunicação Social, investigador na área da Comunicação Política e colaborador em projetos de Educação para a Cidadania. Interessa-se por temas como a opinião pública, o discurso político e o impacto das novas formas de mediação na cultura contemporânea. Escreve com regularidade sobre política, sociedade e “media”, procurando sempre um olhar crítico e fundamentado sobre os fenómenos do seu tempo.

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