A paciência de Sísifo e a “câmara do beijo”  

 A paciência de Sísifo e a “câmara do beijo”  

Albert Camus (expressoexistencial.substack.com)

“Já vi muitas pessoas agirem mal com muita moral e todos os dias constato que a honestidade não precisa de regras”, escreveu Albert Camus sobre o absurdo da existência humana, na sua obra de reflexão filosófica “O Mito de Sísifo”. A frase inicial do livro parece-lhe essencial: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.” Pois, para o escritor franco-argelino, julgar “se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia”1.

(Direitos reservados)

Neste ensaio, Alberto Camus recorre à figura mítica de Sísifo, mestre da malícia e da felicidade, condenado a empurrar uma pedra até ao cimo de uma montanha, sem nunca atingir o topo, porque uma eterna e irresistível força a faz rolar, sucessivamente, pela serrania abaixo e, assim, voltar ao ponto de partida. Não obstante o ónus desta metáfora, Camus considera que, mesmo reconhecendo o absurdo da vida, ao atender ao confronto entre a busca humana por um verdadeiro sentido e a indiferença silenciosa do próprio mundo, a vida merece ser vivida.

(rodolfoolivieri.com)

Para nosso espanto, o filósofo e fundador do jornal de esquerda “Combat” admite que a solução está na nossa capacidade de revolta contra o absurdo e não na fuga dele. Paradoxalmente, a dita revolta é uma aceitação consciente da falta de sentido da vida e a determinação deliberada de a usufruir plenamente, abraçando-a, sem ilusões nem esperança metafísica. Talvez ao jeito do Esteves no poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos. Ou seja, Albert Camus diz que “é preciso imaginar Sísifo feliz”, apesar da natureza absurda da existência e das tarefas repetitivas e sem lógica a que, muitas vezes, estamos sujeitos. Cabe-nos, portanto, apostar num comportamento ético que nos ajude a viver com consciência, liberdade e paixão.

As paixões e as relações amorosas entre colegas de trabalho são comuns e acontecem naturalmente, quase sempre evitando os conflitos de interesses e as zonas cinzentas nas empresas, sem que isso contenda com a reserva da intimidade e da vida privada dos trabalhadores.

Casal tem reacção inusitada num espectáculo da banda Coldplay e surpreende o vocalista Chris Martin. (Créditos fotográficos: Reprodução/TikTok – g1.globo.com)

Todavia, num recente concerto da banda Coldplay, em Boston, a tradicional ronda do “jumbotron” ou da “câmara do beijo” – refira-se que as “kiss cams” são populares nos Estados Unidos da América (EUA), principalmente durante os jogos de basquetebol ou de basebol – surpreendeu o director executivo (CEO) abraçado à directora de recursos humanos da empresa de tecnologia Astronomer, que se baixou atrás de uma grade de protecção do Gillette Stadium, enquanto ela cobria o rosto e virava as costas à câmara, para não ser identificada no grande ecrã do recinto.

Ao expor o suposto caso de traição ou de relacionamento extraconjugal, o vídeo viralizou nas redes sociais e nas plataformas digitais X e TikTok. Esse episódio desconfortável para os dois fãs da banda mereceu um comentário bem-humorado do vocalista Chris Martin e risos no público. O CEO da empresa tecnológica pediu a demissão2 e surgiu a dúvida: é proibida a relação amorosa entre colegas de trabalho? Pode levar a despedimentos por justa causa?

Há, sim, que distinguir uma ligação amorosa consentida do assédio laboral e dos abusos de poder, que estão, obviamente, em patamares diferentes. À sombra de um alegado puritanismo, nos EUA, com alguma frequência, rotula-se simples afectos como traição matrimonial e confunde-se a vida privada com a representação social3. Também faz parte da memória colectiva o processo de “impeachment” de Bill Clinton, por ter mentido, sob juramento, quando testemunhou sobre a sua relação com a estagiária Monica Lewinsky. 

No contexto laboral português, o empregador tem igualmente a possibilidade de estabelecer regras ou um regulamento interno sobre os aspectos da conduta e dos procedimentos na empresa, mas não se pode intrometer na vida privada dos trabalhadores. Como concluiria Albert Camus, no mundo do absurdo, “o valor de uma noção ou de uma vida mede-se pela sua infecundidade”.

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Notas:

1 – O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 27 de Julho) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

2 – Como regista a RTP Notícias, perante a atenção mediática, “a Astronomer anunciou a abertura de uma investigação interna e o afastamento de Andy Byron”. No dia seguinte (17 de Julho), “a empresa confirmou a sua demissão”.

3 – “Agora foi a vez da dire[c]tora de Recursos Humanos da Astronomer. Kristin Cabot apresentou a demissão poucos dias depois de ter sido filmada num momento íntimo com o então CEO da empresa, Andy Byron, durante um concerto dos Coldplay nos Estados Unidos”, assim inicia a referida peça da RTP Notícias, publicada a 25 de Julho.

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28/07/2025

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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