Altamira

 Altamira

Caverna de Altamira, em Espanha (cerca de 40 mil a.C.). (researchgate.net)

A palavra “grotesco”, de origem latina, surgiu no século XIV, quando foram descobertos artefactos e ruínas soterradas em Roma, tais como corredores e salões do antigo complexo do palácio a Casa Dourada – uma construção requisitada pelo imperador Nero, após o grande incêndio que consumiu boa parte da cidade, em 64 d.C.  

Grotto, grutta ou pequena caverna. Nesses espaços subterrâneos reabertos depois de quase mil e quinhentos anos, onde foram descobertas estátuas e figuras mitológicas representadas antropomorficamente como seres com metade humana e outra metade animal. 

Entre os pintores da época, que visitaram as cavernas, salienta-se Leonardo da Vinci, que executou os seus desenhos designados “Cabeças Grotescas”. 

Nascia, nesse momento, não apenas um vocábulo, mas também uma expressão que se faria extensa às outras artes futuras, como o cinema fantástico e de terror, em que dominam seres bizarros como Frankenstein, Drácula, o Homem Lobo e outros. 

“Satyricon”, filme (de 1969) dirigido por Federico Fellini. (mubi.com)

No teatro, encontramos o grotesco em algumas representações cómicas, pantomimas, sobretudo no teatro romano, tão excelentemente mostrado e recriado por Federico Fellini, no seu “Satyricon” – filme baseado no texto de Petrónio. O grotesco estará presente no conceito de “esperpento” utilizado por Ramón del Valle-Inclán1, autor galego, mas de escrita sempre em Espanhol (ou Castelhano). 

É na última etapa do pintor aragonês Francisco de Goya, concretamente nas colecções “Os Caprichos” e “Desastres de Guerra”, em que se configura a sua faceta mais satírica e mordaz, mantendo uma relação estreita com o molde dramático de “o primeiro poeta espanhol” – a personagem central do livro “Luzes de Boémia”, de Valle-Inclán, que este autor proporia um século mais tarde. 

“Os Caprichos” de Goya exemplificam um mundo em crise, entendido no sentido de mudança. (realacademiabellasartessanfernando.com)

Também encontramos o grotesco nos filmes de Luis Buñuel, particularmente em “Viridiana” e em “O Anjo Exterminador”. 

(elconfidencial.com)

Na pintura, lembro ainda Georg Grosz, artista alemão, conhecido especialmente pelos seus desenhos caricaturais e pinturas da vida social de Berlim, na década de 1920. 

Altamira é uma cavidade natural, na rocha, que preserva um dos ciclos pictóricos e artísticos mais importantes da Pré-História. Estamos a falar da gruta (ou caverna) de Altamira e da arte rupestre paleolítica da costa cantábrica, declarada Património da Humanidade pela UNESCO, situada no município espanhol de Santillana del Mar, na Cantábria. 

Bisonte retratado na caverna de Altamira, na Cantábria, pintura datada do período Paleolítico Superior. (worldhistory.org)

Desde a sua descoberta, em 1868, por Modesto Cubillas, e do seu posterior estudo, por Marcelino Sanz de Sautuola, tem sido escavada e estudada pelos principais pré-historiadores de cada período, atendendo que a sua atribuição ao Paleolítico foi aceite. 

Considerando a Wikipédia, ficamos a saber que, pelas peritagens realizadas, pode-se afirmar que a gruta foi utilizada durante vários períodos, totalizando 22 mil anos de ocupação, desde há cerca de 36500 anos até há 13 mil anos, “quando a entrada principal da gruta foi fechada por um desabamento, todos dentro do Paleolítico Superior”. Lemos ainda que o estilo de muitas das suas obras se enquadra na chamada “escola franco-cantábrica”, caracterizada pelo realismo das figuras representadas. Refere também esta enciclopédia livre que a caverna de Altamira “contém pinturas policromadas, gravuras, pinturas a preto, vermelho e ocre representando animais, figuras antropomórficas e desenhos abstratos e não figurativos. 

Vista geral do tecto da caverna de Altamira. (es.wikipedia.org)

A gruta de Altamira foi descoberta – como mencionámos,  em 1868 – por um pedreiro asturiano chamado Modesto Cubillas (Modesto Cobielles Pérez) que, enquanto caçava, encontrou a entrada ao tentar libertar o seu cão, que ficou preso entre as fendas de algumas rochas, quando perseguia uma presa. Cubillas informou Marcelino Sanz de Sautuola, um rico proprietário local e “amador” de Paleontologia, para quem trabalhava. Todavia, este não a terá visitado até, pelo menos, 1875; provavelmente, em 1876. 

A descoberta das pinturas rupestres foi, na verdade, feita pela filha de Marcelino Sanz de Sautuola. Enquanto o seu pai permanecia na entrada da gruta, ela introduziu-se numa sala lateral. Aí, viu algumas pinturas no tecto e correu para contar ao pai. A filha de Marcelino Sanz de Sautuola ficou impressionada ao ver a magnífica colecção de pinturas daqueles estranhos animais que cobriam quase toda a abóbada. 

A descoberta foi contestada pela comunidade científica e pela Igreja, atribuindo as pinturas a um pintor da época ou, mesmo, a Marcelino Sanz. 

A sentença final sucedeu no dia 1 de Dezembro de 1886, pela mão do regente de Calcografia Nacional e director da Escola Nacional de Artes Gráficas, Eugenio Lemus Gómez del Olmo, na sessão da Sociedade Espanhola de História Natural: “[…] tais pinturas não têm as características da arte da Idade da Pedra, nem arcaica, nem assíria, nem fenícia, mas apenas a expressão que um discípulo medíocre da escola moderna daria […]”

A morte de Sanz de Sautuola, em 1888, submerso no descrédito da sua defesa, parecia condenar, definitivamente, as pinturas de Altamira a serem uma fraude moderna. 

Filme “Altamira” (película de 2016). No final do século XIX, um arqueólogo e cientista amador (Marcelino Sanz de Sautuola) e sua filha de 8 anos (María) descobriram na Cantábria uma das obras pré-históricas mais importantes da história: as pinturas de Altamira. (lavanguardia.com)

Este episódio é o argumento central do filme “Altamira” (de 2016), com realização de Hugh Hudson e interpretação de Antonio Banderas, no papel de Marcelino Sautuola. O filme centra uma atenção particular na figura da filha de Marcelino, a menina e a sua descoberta… É curioso que também foram três meninos os que descobriram a chamada a Caverna de Les Trois-Frères (em 1914), com pinturas decorativas do Paleolítico Superior, na qual foram encontradas numerosas figurações parietais que datam do período Magdaleniano. Faz, assim, parte da rede de cavernas decoradas da região pirenaico-cantábrica. 

A inocência dos meninos parece ligar-se à infância da arte, com os primeiros momentos da criação humana… E são, precisamente, elementos dessas pinturas grotescas que, tantas vezes, parecem estar presentes nas garatujas precoces. 

No século XIX, ninguém imaginava que humanos pré-históricos fossem capazes da sofisticação artística revelada em Altamira e noutras cavernas. Surpreso e encantado, o pintor cubista Pablo Picasso (1881-1973) teria afirmado: “Depois de Altamira, tudo é decadência.”

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Datas a recordar 

80 anos da bomba atómica sobre as cidades de Hiroxima e de Nagasaki. Os números não são precisos, mas sabemos que foram mais de 145 mil vítimas em Hiroshima e 74 mil na segunda cidade bombardeada, três dias depois, a 9 de agosto. 

Detalhe da técnica de sfumato no rosto de Mona Lisa, por
Leonardo da Vinci. (pt.wikipedia.org)

Uma enorme coluna de fogo, o cogumelo atómico arrasou tudo! Voltando a Altamira, foi o fogo que permitiu a descoberta e a realização das pinturas; munidos de rudimentares lamparinas e outras fontes de luz, os primitivos de Altamira criaram a primeira “Capela Sistina” da História da Humanidade. Eles inventaram e aplicaram o sfumato (ou esfumado) que o Renascimento, na pintura, utilizou mais tarde em quadros como os de Leonardo da Vinci! 

30.º aniversário do massacre ou genocídio de Srebrenica, onde mais de oito mil homens e rapazes muçulmanos bósnios foram mortos pelo Exército Sérvio da Bósnia. Hoje, a Europa está novamente em guerra, algo que parecia impensável depois da II Guerra Mundial! 

Lápides no memorial do genocídio de Potočari, perto de Srebrenica. (pt.wikipedia.org)

Em 2025, quatro antigas colónias portuguesas de África (Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe) celebram o cinquentenário das suas independências, vindo juntar-se à Guiné-Bissau, que, dois anos antes (em Setembro de 1973), proclamara unilateralmente a existência do Estado da Guiné-Bissau, acedendo à independência, formalmente, a 10 de Setembro de 1974. 

Gostaria de destacar a série de reportagens publicadas no jornal Público sobre a repressão da PIDE/DGS em Moçambique, desde 1964 e até 1974. 

As publicações foram ilustradas magnificamente com desenhos do artista Malangatana2. Ficou na minha memória o escrito que afirma: “[…] não havia dia em que não morresse uma pessoa!”

Documentos encontrados na Torre do Tombo, reunidos pela Comissão
de Verdade, acerca da actividade da PIDE em Moçambique durante o
Estado Novo. (publico.pt)

Finalmente, o que existe em Gaza, não é “hambre” (fome) é “hambruna”, superlativo para o qual não encontro a correcta palavra em Português para este conceito espanhol.

E o fogo que nos devasta novamente. É possível que perante esta tragédia nacional e pessoal, as pessoas pensem ou reflictam sobre o sofrimento dos habitantes de Gaza, cujas casas devastadas desaparecem todos os dias e onde é, cada vez mais, difícil encontrar abrigo!

Notas: 

1 – Antes de começarmos a discutir a relação entre o grotesco e o escritor Ramón del Valle-Inclán (1886-1936), é essencial compreender o conceito para percebermos do que estamos a falar. Quando dizemos que algo é “esperpéntico” (grotesco), queremos referir que foi degradado, coisificado e desnaturalizado. É uma técnica que se centra na realidade para a tornar mais grotesca, mais caricatural, com o objectivo de lançar uma crítica ao mundo e à sociedade.

Malangatana (e-cultura.pt)

2 – Malangatana Valente Ngwenya (Matalana, distrito de Marracuene, 1936 – Matosinhos, 2011) foi um artista plástico e poeta moçambicano, conhecido internacionalmente pelo seu primeiro nome “Malangatana”, tendo produzido trabalhos em vários suportes e meios: desenho, pintura, escultura, cerâmica, murais, poesia e música. 

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21/08/2025

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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