Quando os mortos roubam espaço aos vivos

 Quando os mortos roubam espaço aos vivos

(Créditos fotográficos: Paul Wolke – Unsplash)

(Créditos de imagem: Charlota Blunarova – Unsplash)

As relações são complicadas e a que temos com a morte é das piores. Embora a possibilidade de morrermos habite sempre no nosso subconsciente, é fácil ignorá-la, pelo menos enquanto somos jovens. Também não pensamos na dos outros até que acontece e então – em particular, quando nos são próximos – é impossível ignorar ou esquecer. Daí que o luto exista como uma sequência de rituais utilizados para limitar a dor. Enterros, cores negras, orações: todos criados para fechar um vazio complicado de preencher. Mesmo com estas tradições, muitos pagariam bom dinheiro para falar com um amado perdido. Nada de novo, já que os “médiuns”, há muito, tentam aproveitar-se desta fraqueza. E a modernização não mudou nada: enquanto nos afastamos das bolas de cristal, a tecnologia e a ganância já começaram a expandir as possibilidades mais além, trazendo os mortos de volta à vida.

Necromancia digital, conceito que soa a fantasia ou a ficção científica, mas representa algo que já existe. Necromancia, como ideia, é a utilização de artes mágicas para falar com os mortos ou, nalgumas interpretações, de trazê-los de novo à vida. Um desejo normal, como já vimos, mas pouco aconselhável. A Bíblia proíbe necromancia várias vezes, uma abominação aos olhos de Deus. Nada que se ouça dos mortos se pode confiar. Stephen King, no livro “Samitério de Animais”, explora, de maneira arrepiante, a necessidade de trazer um ser querido de volta à vida e as consequências quando quem volta não é bem quem partiu.

(Direitos reservados)

Mais recentemente, o episódio “Já volto” (2013) de “Black Mirror” – série de ficção científica inglesa que algum dia será um documentário –, em que uma mulher grávida perde o seu namorado enquanto faz uma mudança. Semanas depois do funeral, recebe uma caixa com uma versão androide do companheiro, tendo que decidir se o mantém na sua vida (e da filha). Se ainda não chegámos a tanto, já existe a combinação de necromancia com meios digitais, ou seja, replicar os mortos via tecnologia, não para prever o futuro, mas, se calhar, entender melhor o passado.

Exemplo disto foi a entrevista, nos Estados Unidos da América, de Jim Acosta, antigo correspondente da CNN, a Joaquin Oliver, no dia do seu aniversário. O problema é que Joaquin faleceu em 2018, vítima do tiroteio em Parkland, na Flórida. Trazer um avatar digital seu à vida para lembrar o massacre até pode ter boas intenções, mas, mesmo com permissão da família, parece-me que não faz mais do que esticar a dor sem acrescentar nada que não se saiba. E, claro, há aproveitamentos puramente comerciais, como o de fazer Tupac, morto em 1996, dar uma perninha num concerto em forma de holograma; criar imagens, com Inteligência Artificial, de Ozzy Osbourne e Tina Turner para um espetáculo de Rod Stewart (“Para a próxima és tu”, terá pensado o espírito de Ozzy); ou o Abba Voyage, uma residência permanente em Londres para os Abba, com direito a arena própria, onde avatares digitais (os “ABBAtars”, sim, e não sou eu a inventar) continuam tão populares como nos anos 1970 – e exatamente iguais ao que pareciam na altura.

Os ABBAtars em Londres. (robophilosophy.com)

O passado é importante e não deve ser esquecido, mas, enquanto olhamos para trás, não olhamos para a frente. É preciso aceitar a perda como parte da vida e evitar viver apenas de memórias. Ironicamente, há uma tradição pré-católica que entende bem isto: “El Día de los Muertos”, no México, cujo objetivo é não só recordar os falecidos, mas também celebrar a vida. Todos conhecemos as imagens: pessoas vestidas de esqueletos, caras pintadas, caveiras coloridas. No Dia dos Mortos, a Morte não é apenas aceite, é bem-vinda. Uma vez por ano, criam-se altares com oferendas (onde não pode faltar a comida favorita dos falecidos), espalham-se pétalas para indicar o caminho aos espíritos. Uma realidade bem diferente do nosso 1.º de Novembro, mas cuja força sobreviveu aos missionários espanhóis e acabou por incorporar-se na tradição católica. Talvez devêssemos aprender mais com esta tradição do que com os hologramas que fabricamos.

Dia dos Mortos no México. (hablacultura.com)

Embora esta abordagem tenha mais de 500 anos, parece-me refrescante. A morte vai ser sempre triste, mas essa tristeza pode converter-se numa apreciação da vida, se calhar melancólica, e das memórias que se viveram. Pessoalmente, quer se acredite no Além ou não, todos gostaríamos de ter um momento mais com quem já partiu. Em vez de um foco na perda, por que não pensar no que se viveu e ainda se pode viver? Utilizar a tecnologia para manter vivos os mortos, em vez de celebrar o que se pode, é, muito literalmente, contranatura. Como sociedade, também não haverá mal nenhum se, ocasionalmente, a tecnologia for utilizada para recuperar artistas. Imaginem um Estádio da Luz onde recriam golos históricos de Eusébio? Até aqui, tudo parece inofensivo. O problema é quando isto se torna a norma e as sombras do passado limitam a criatividade e os novos talentos. Um mundo e uma vida onde os mortos roubam espaço aos vivos não é mais do que um eco. Se quem partiu continua nos palcos, nunca haverá novas estrelas.

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06/10/2025

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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