De uma casual leitura cruzada

 De uma casual leitura cruzada

Teatro Nacional São João, no Porto. (visitportugal.com)

Recorrendo à edição de sábado (11 de Outubro) do jornal Público, vale a pena cruzar a leitura do artigo de opinião de Bárbara Reis (intitulado “Posso pedir três segundos da sua atenção?”) e a entrevista da jornalista Inês Nadais a Victor Hugo Pontes (mais a afirmação aí contida de Pedro Sobrado). É um exercício que aconselho vivamente.

A partir dessa circunstância, casual,  percebi porque é que, a partir de hoje, mais do que ter decidido, constato que sou um conservador: quero conservar a palavra, último reduto de pensamento contra o instantâneo que destrói a Humanidade na destruição da humanística. 

(tnsj.pt)

Nada tenho contra o novo director do Teatro Nacional São João (TNSJ), nem o conheço e não tenho – deixei de ter, há uns tempos – qualquer desejo e apetência pelo TNSJ. Mais: não o considero causa, mas consequência.

Não consigo crer no progressismo de quem se diz com medo do crescimento da extrema-direita e pensa para a servir sob a auto-ilusão desse progressismo. É, pois, contra isso (lembrando que também Mussolini saudava a velocidade e a “modernidade”) que me descubro um conservador.

Decididamente, quando digo que sou um conservador, não estou no domínio da retórica.  

As ideias de uma extrema-esquerda de sofá de veludo e de uma extrema-direita populista cruzam-se no desiderato de prosseguir-se em direcção à desumanização e à morte do pensamento. Entre um pseudovanguardismo ignorante e o soundbite popularucho, a única diferença substantiva reside no destinatário.

(tnsj.pt)

Se a esta coincidência da leitura do Público de sábado (11.10.2025) juntar os adolescentes fascinados com a extrema-direita boçal e os artistas esquerdistas fascinados com o esvaziamento da palavra, tendo-o por pensamento moderno, como podia eu deixar de ser um conservador? Sou mesmo. E apocalíptico: no sentido rigoroso da palavra como revelação do Armagedão1 da Cultura.

Só mesmo Deus nos pode salvar, a espécie já não se salva por si mesma. Não há esperança fora do domínio de uma epifania milagrosa. “No princípio era o Verbo”2, no fim morre o Verbo.

“Estou lúcido, merda, estou lúcido!”3: na recta final da minha vida, na recta final da humanística.

………………………….

.

Notas da Redacção:

1 – Armagedão refere-se à batalha final bíblica entre as forças do bem e do mal, localizada no monte Megido. Actualmente, o termo também é usado para descrever um evento catastrófico, como uma guerra global ou apocalipse. Acrescente-se também que “apocalipse” significa “revelação”, sendo uma palavra de origem grega (apokálypsis) que exprime literalmente “uma descoberta” ou “desvendamento”.

2 – “No princípio era o Verbo” é a frase que abre o Evangelho de João, no Novo Testamento da Bíblia (nos versículos 1:1-14).

3 – Referência ao final do poema “Sou Lúcido”, de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa): “[…] Já disse: sou lúcido. / Nada de estéticas com coração: sou lúcido. / Merda! Sou lúcido.”

.

………………………….

.

Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

.

13/10/2025

Siga-nos:
fb-share-icon

Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

Outros artigos

Share
Instagram