Miguel Torga e a realidade telúrica do país

 Miguel Torga e a realidade telúrica do país

Miguel Torga, em 1976. (espacomigueltorga.pt)

Há 87 anos, as pessoas que sabiam ler eram muito poucas – a taxa de analfabetismo ainda se apresentava vergonhosamente elevada, agravada pelo regime do Estado Novo que, desde 1933, dificultava o acesso à educação, sobretudo das raparigas –, mas as cartas escritas à mão, mais do que as palavras, continham a sensibilidade dos dedos mais ou menos hesitantes na expectativa de uma resposta ou de um afago. Hoje, as mensagens digitais, quase sempre apressadas, deixam de ser esses objectos íntimos e de valor duradouro, sobretudo pelas memórias que abrigavam, se calhar, escondidas no fundo do baú.

Em 1938, Miguel Torga conhece Andrée Crabbé, sua futura mulher, em casa de Vitorino Nemésio, em Coimbra. (espacomigueltorga.pt)

Não é por acaso que, agora, leio um registo diarístico de Miguel Torga, datado de 2 de Novembro de 1938, quando o país esmorecia sob a ditadura corporativista de António de Oliveira Salazar. Então com 31 anos de idade e tendo já publicado, em prosa, a obra “O Terceiro Dia da Criação do Mundo”, o escritor confessava ter passado “o dia embrulhado na carta dela”. De manhã, diz que nem tentou mais nada, fez da leitura daquela página a sua finalidade. À tarde, durante o exercício clínico, de “minuto a minuto, acordava sobressaltado dentro dos ouvidos dos doentes: – A carta dela!”.

Miguel Toga casa, em Coimbra, com Andrée Crabbé no dia 27 de Julho. Foram padrinhos de casamento os amigos Paulo Quintela e Martins de Carvalho. (espacomigueltorga.pt)

De madrugada, Torga não resistiu ao impulso de reler a tal epístola à procura de afecto: “Mais do que sono, eu preciso é de ternura sobre estes ossos.” Tido por alguns como um fazedor de poesia rude, ao jeito do mítico gigante Anteu – que precisava de tocar o chão para se tornar forte –, Miguel Torga é deveras sensível quando nos conta a sua experiência telúrica de forma autêntica, identificando-se assim com as pessoas de qualquer lugar, desfazendo barreiras e preconceitos. Naturalmente, importa para ele a concretização da ideia de que “o universal é o local sem paredes”. Ou seja, não se fixa no regionalismo estéril, porque recupera a essência dos espaços, das culturas e das comunidades de um Portugal que revisitamos na sua escrita.

Vila Nova, no município de Miranda do Corvo. (pt.wikipedia.org)

No seguimento de um recente artigo biográfico e de um livro em que José Vieira Lourenço recorda a passagem do médico Adolfo Correia da Rocha (que, entretanto, adoptara o pseudónimo literário Miguel Torga) por Vila Nova, no concelho de Miranda do Corvo, revi o documentário televisivo “Miguel Torga, o meu Portugal”, com depoimentos de António Barreto, Carlos Reis, Eduardo Lourenço, Helena Buescu, José Augusto Bernardes, José Manuel Mendes, Marcello Duarte Mathias e Maria Alzira Seixo. Estes intelectuais cruzam pontos de vista sobre o “cavador instintivo” que quis conhecer a sua terra por dentro e que nos deixa uma obra robusta, cujas raízes, tais como as da urze, tanto percorrem as charnecas como os matos baixos e as serranias.

O poeta Miguel Torga e a sua ligação telúrica.
(dolethes.blogspot.pt)

Ao assumir esta condição, em 7 de Dezembro de 1949, Miguel Torga regista igualmente no “Diário” que é “por funda necessidade cultural” que peregrina na sua pátria, como quem busca um local de devoção ou um lugar santo.

Acusando a falha ou a inconsistência de Eça de Queirós ao romancear “A Cidade e as Serras”, pois “nunca calcorreou as serras”, aproxima-se de Camilo Castelo Branco, a seu ver, “mais autêntico porque atolava os pés no barro que moldava”. Logo, Torga considera que a “realidade telúrica dum país, descoberta pelos métodos dum almocreve, é muito mais instrutiva do que trinta calhamaços de história, botânica ou economia”.

Amar o torrão ou a leiva que lhe deu berço é, também, “objectivar-lhe tanto quanto possível os defeitos e as virtudes, para que o nosso afecto seja fecundo e progressivo”. Como diria António Barreto, ao poeta transmontano não interessa a realidade estatística das coisas, mas os traços que fundamentam a identidade de Portugal: “São horas de tentar compreendê-lo doutro modo.” 

.

………………………….

.

Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 2 de Novembro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

.

03/11/2025

Siga-nos:
fb-share-icon

Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

Outros artigos

Share
Instagram