Mais pensamento, menos retórica: precisa-se

 Mais pensamento, menos retórica: precisa-se

No Porto, em Agosto de 2025. (Créditos fotográficos: Antoine Pouligny – Unsplash)

Soube, há dias, de uma prodigiosa entrevista a Eugénio de Andrade, em 1981.

“– Que acha que mudou depois do 25 de Abril em 7 anos?

– Nada.

– Nada?!

– É, nada. A mentalidade não mudou, nada muda.”

25 de Abril de 1974. (ncultura.pt)

Tirar da extrema pobreza milhões de portugueses, abrir a escola a populações sem acesso a ela e à saúde e à rede pública de esgotos e a um bocado de carne no caldo e o mais necessário era o imediato a fazer. Mas não bastaria, não bastou. Primeiro, vivemos na vertigem do PREC1, como se tudo se pudesse ter porque sim. Depois, a miragem de sermos, por adesão à Comunidade Económica Europeia (e depois União Europeia), uma França ou uma Alemanha, ao virar da esquina, também porque sim. 

O PREC (até novembro de 1975) foi marcado por divergências sobre a descolonização e entre projectos políticos assistindo-se a tentativas de golpes de estado e a uma inflexão à esquerda. Neste ambiente tenso, rumou-se à democracia com as primeiras eleições livres e a redação da Constituição de 1976. (ensina.rtp.pt)

O que ficou sempre por fazer foi o trabalho de casa: consolidar avanços materiais com avanços da mentalidade. Logo, a maioria dos patrões não evoluiu para empresários, a maioria dos trabalhadores não evoluiu para cidadãos, a maioria dos alunos não evoluiu para estudantes, a maioria dos políticos não evoluiu para servidores da coisa pública. O lucro fácil e trafulha impôs-se, a fraca produtividade venceu, a ignorância manteve-se, a coisa pública escorregou na corrupção e afastou os capazes. Portugal emaranhou-se em todas estas peias.

E surgiram os demagogos da “salvação”, a qual é ou será ainda pior, quando aplicada: será a nova alucinação colectiva de um milagreiro. Sem a compreensão disto tudo num todo, nada, de facto, mudou substantiva e solidamente. Recorrendo a uma feliz expressão de Bento de Jesus Caraça, “a cultura integral do indivíduo” é o que possibilitará a transformação de mentalidades para tornar norma a excepção de uns poucos empresários, trabalhadores, estudantes, políticos. Uma sociedade com norte só se faz com a bússola da cultura, no sentido amplo; e reflectida no sentido mais restrito. O manifesto desinteresse à esquerda (feita de gritaria e namoros) e à direita (feita de medos e ausências) nestas matérias explica porque não lemos e porque ouvimos música pimba; e porque tantos doutoramentos não traduzem igual conhecimento exigente.

(sicnoticias.pt)

Mais do que salvar este hoje de estrepitoso falhanço, pensemos já para depois de amanhã porque amanhã vai ser o refluxo sem nada mais do que o atavismo do qual não saímos. Entretanto, semeemos pequenos grãos e abandonemos a retórica. A culpa não é do povo, é das elites. Tristes elites estas, pobre povo que assim as tem! Ai Portugal que continuas igual!

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Nota da Redacção:

1 – Sobre o Processo Revolucionário em Curso (PREC), a Wikipédia recorda que também é conhecido como Período Revolucionário em Curso, designando, em sentido lato, o período de actividades revolucionárias, marcante na História de Portugal, decorrido durante a “Revolução dos Cravos”, iniciada com o golpe militar de 25 de Abril de 1974 e concluída com a aprovação da Constituição Portuguesa, em Abril de 1976. O termo “PREC”, é frequentemente usado para aludir ao período crítico do “Verão Quente de 1975”, com o seu antes e o seu depois, que culmina com a Crise de 25 de Novembro de 1975.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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06/11/2025

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Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

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