Chega: como fazer coisas (más) com as palavras

 Chega: como fazer coisas (más) com as palavras

Ahsan Manzil Museum, em Dhaka, no Bangladesh. (Créditos fotográficos: Abdullah Al Imran – Unsplash)

Desde a semana passada que se avistam, pelas ruas de Portugal, os primeiros cartazes da campanha presidencial de André Ventura. Fiel ao estilo de choque a que habituou o espaço público, regressa com palavras do mais vil e rasteiro que se pode conceber: “Isto não é o Bangladesh” e “Os ciganos têm de cumprir a lei.” Não são frases que pretendam dialogar ou convidar à reflexão, mas antes ferir – sem dó nem piedade – as minorias de sempre. Julguei, confesso, que ninguém se atreveria a defender tais cartazes; que todos reconheceríamos, com um mínimo de lucidez e decência, o seu carácter caciqueiro, racista e xenófobo. Enganei-me. Ao longo da última semana, não faltou quem procurasse justificá-los.

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O argumento é simples, mas deploravelmente pobre: André Ventura disse a verdade. É certo – Portugal não é o Bangladesh, e todos, ciganos incluídos, estão sujeitos à lei. Mas o problema é que a linguagem, ao contrário do que tantos parecem supor, não serve apenas para descrever o Mundo: serve também para agir sobre ele. Foi John Langshaw Austin, filósofo britânico da linguagem, na sua obra “How to Do Things with Words?” (de 1962), quem o demonstrou. Desfez-se, então, a fronteira entre “dizer” e “fazer” e revelou-se que, além de constatar factos, as palavras também produzem efeitos e instituem realidades. Austin propôs, assim, a distinção entre enunciados constativos, que descrevem, e enunciados performativos, que transformam – e mostrou como, muitas vezes, os primeiros são também os segundos.

John Langshaw Austin, filósofo britânico da linguagem. (iep.utm.edu)

Clarifiquemos. Quando um padre pronuncia “declaro-vos marido e mulher”, não relata apenas um acontecimento: cria-o. Quando um juiz afirma “o réu está condenado”, não comenta uma decisão: realiza-a. Nestes casos, o “dizer” é também um “fazer”.

É precisamente isso o que Ventura faz com os seus cartazes. “Isto não é o Bangladesh” não é uma observação geográfica – é um ato de exclusão. “Os ciganos têm de cumprir a lei” não é um apelo à legalidade – é uma acusação travestida de obviedade, uma insinuação coletiva que toma o preconceito por princípio. Traça-se, desta forma, uma fronteira simbólica entre “nós” e “eles”: os que pertencem e os que ameaçam, os que são portugueses e os que são intrusos.

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As consequências são tangíveis. Nas escolas, há crianças de origem bengali e de etnia cigana que ouviram aquelas palavras repetidas pelos colegas, em tom de escárnio. Há famílias que voltaram a sentir o peso da suspeita e da exclusão. Ainda há dias, na sequência de um furto de que era vítima, um cidadão bengali foi assassinado. É assim que a linguagem performativa de Ventura opera: transforma o preconceito em senso comum e a ofensa em normalidade.

Sabemo-lo bem: não se trata de um episódio isolado, nem sequer exclusivo do líder. Esta é a estratégia que pauta, com inquietante naturalidade, a atuação de todo o Grupo Parlamentar do Chega. Quando, há poucos dias, o deputado Filipe Melo disse à deputada angolana Eva Cruzeiro “vá para a sua terra”, repetidamente e cada vez mais alto, não lhe sugeria umas férias nem uma viagem de lazer – praticava, de modo deliberado, um ato de racismo. Também aí, o “dizer” foi um “fazer”.

Crianças em Dhaka, no Bangladesh. (Créditos fotográficos: Mohammad Samir – Unsplash)

Engana-se, pois, quem julga que André Ventura e seguidores não sabem o que fazem. Pelo contrário: compreendem, talvez melhor do que ninguém, a lição de Austin, mas aplicam-na de modo perverso. Há palavras que informam, há palavras que comovem e há palavras que ferem. As de André Ventura – e as dos que o acompanham – pertencem a esta última categoria. Ferem, excluem e, sobretudo, constroem o inimigo que depois prometem combater.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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06/11/2025

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Lourenço Ferreira

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Lourenço Ferreira é mestrando em Comunicação Social, investigador na área da Comunicação Política e colaborador em projetos de Educação para a Cidadania. Interessa-se por temas como a opinião pública, o discurso político e o impacto das novas formas de mediação na cultura contemporânea. Escreve com regularidade sobre política, sociedade e “media”, procurando sempre um olhar crítico e fundamentado sobre os fenómenos do seu tempo.

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