O arquiteto que sempre buscou “a beleza das coisas simples”

 O arquiteto que sempre buscou “a beleza das coisas simples”

Manuel Tomás de Carvalho Botelho, nasceu a 1939 em Vila de Rua, no concelho de Moimenta da Beira. (Créditos fotográficos: Luís Viegas – noticias.up.pt)

Soube, como é natural, do falecimento, a 29 de outubro, do arquiteto Manuel Tomás de Carvalho Botelho, um dos meus melhores professores no Seminário de Lamego, antes de cursar Arquitetura. Recordo-o como o docente claro, profundo, com singular empenho no que ensinava e inovador, em termos didático-pedagógicos.

Todavia, o então licenciado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, já revelava notória aptidão para as Belas-Artes e, em especial, para a Arquitetura, como o demonstra a total reconfiguração da igreja do Seminário, a seu cargo, ordenada pelo então bispo diocesano, D. João da Silva Campos Neves, e inaugurada pelo sucessor, D. Américo Henriques). Nestes termos, se o recordo como insigne professor de Teologia Fundamental e de Teologia Dogmática (no ângulo sacramental), também não o olvido como professor de Arte Sacra, sensível à adequada configuração do espaço litúrgico, em consonância com a dignidade, a solenidade e a simplicidade das celebrações, e ao seu dimensionamento, em conformidade com a potencial composição da assembleia sagrada. 

Manuel Botelho, Cidade de Braga – Universidade do Minho: perspetiva, Trabalho Final de Curso – seção do painel 19, Roma, 1978. (fims.up.pt)

Não posso, outrossim, esquecer-me do tempo em que foi prefeito no Seminário de Resende e, com toda a paciência e clareza, me levou a gostar das cerimónias litúrgicas e, em especial, da ministração da incensação. Foi com ele que, na festa de Nossa Senhora de Lurdes, a 11 de fevereiro de 1966, aprendi que também o povo merece a incensação nas liturgias solenes.

Ainda desse tempo, é de assinalar a geral simpatia de que o então presbítero gozava na cidade de Lamego, nomeadamente, na paróquia de Almacave e no seminário, onde nós, os estudantes, o alcunhávamos de Manuel Coelho, em razão das duas últimas sílabas do apelido.     

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É óbvio que Manuel Botelho é conhecido, sobretudo, como arquiteto, pois foram 30 anos de inteira dedicação à Arquitetura e à sua docência e de matérias conexas com a Arquitetura.

(© Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto – sigarra.up.pt)

Dele, como professor, fala António Teixeira de Matos, relevando que era “um excelente professor que granjeou a admiração e estima dos seus alunos da FAUP [Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto]”. E refere que era “cultíssimo, humano, com uma enorme sensibilidade, um excelente comunicador”, sendo a Arquitetura “um prolongamento do seu ser”, um ser especial que dizia: “Procurei sempre a beleza das coisas simples.”

Contudo, Teixeira de Matos não omite que o doutorado com a classificação máxima Laurea in Architettura pela Universitá degli Studi di Roma – La Sapienza, “foi alvo de invejas, perseguições profundamente injustas de uma certa elite, do seu meio, beneficiária do regime”, mas que a sua obra “é reconhecida internacionalmente pelos seus pares”.

Também em Portugal, ombreou com muitos dos seus pares, que lhe prestaram justa homenagem. E é de salientar que teve a lucidez profissional, o cuidado e o carinho de entregar os testemunhos do seu trabalho profissional e a sua biblioteca a instituições que podem fazer uso útil, para a comunidade científica, de todo esse material.

Cartaz da exposição “Cartografia Manuel Botelho: Obra e
Projeto” que se propunha abarcar num olhar a obra do
arquiteto Manuel Botelho. A sua singular produção
atravessa mais de três décadas e cruza a arquitetura,
o design de objetos, a reflexão teórica vertida para a escrita
e a docência. (fims.up.pt)

O site da Fundação Marques da Silva (FMS) faz abundante memória do arquiteto Manuel Botelho.

Referindo que o seu percurso não é um percurso comum, assinala que cerca da centena de projetos que cruzam a arquitetura e o design de objetos, da continuada reflexão teórica expressa em obra escrita e do exercício de 30 anos de prática docente na FAUP, “capaz de influenciar e entusiasmar as várias gerações de alunos que passaram pelas suas aulas”, confirmam “a intrínseca natureza de quem não poderia deixar de ser arquiteto”. Com efeito, foi esse ramo disciplinar que determinou “o seu modo de vida e o seu modo de ver o Mundo”, mas “indissociáveis da sua formação filosófica e do seu fascínio pela linguagem poética, que cultivava enquanto leitor e autor”.

Inscreveu-se na Facoltà di Architettura dell’Università degli Studi di Roma – La Sapienza, onde, sob orientação de Ludovico Quaroni, com um projeto para a Universidade do Minho, em 1978, obteve a Laurea. De regresso a Portugal, fixou-se na cidade do Porto, onde fundou gabinete próprio. Em 1980, na ainda Escola Superior de Arquitetura, iniciou a primeira experiência como docente, em Projeto V, sob regência do arquiteto Pedro Ramalho, tendo como colegas Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto Moura. Depois, como professor da FAUP, com o arquiteto Fernando Távora, lecionou Teoria Geral da Organização do Espaço, no ano letivo 1987-1988. Partilhou ainda as aulas de Métodos e Linguagens da Arquitetura Contemporânea com o arquiteto José Salgado e integrou a equipa de docentes de Projeto III.

Manuel Botelho venceu o Prémio Nacional de Arquitectura Keil do Amaral
1989, com a Casa Dr. Barroso Pires (Ponte da Barca), e foi nomeado para o
Prémio Mies van der Rohe 1994 e ainda finalista do Prémio Secil de
Arquitectura 2002. (descla.pt) 

O seu percurso incluiu longos períodos de docência em Iniciação ao Projeto e Projeto I, entre 1982 e 1998, sob regência de Sergio Fernandez ou Alfredo Matos Ferreira e, entre 2006 e 2010, em corregência com José Manuel Soares. Alfredo Matos Ferreira viria, aliás, a ser o seu orientador da tese de doutoramento sobre a “Projectualidade em Arquitetura”. Colaborou na equipa de redação do projeto dos estatutos da FAUP e na equipa editorial da RA. Foi convidado a lecionar no Polo de Modena, extensão da Faculdade de Arquitetura de Milão. Proferiu diversas conferências e participou em seminários em Portugal, em Espanha e em Itália.

O seu trabalho integrou várias exposições, com destaque para a Europália 1991 – Arquitetura Contemporânea Portuguesa, que decorreu em Bruxelas, tendo sido, por diversas vezes, distinguido: Prémio Nacional de Arquitetura Keil do Amaral (Primeiras Obras), em 1989, com a Casa Dr. Barroso Pires; várias menções honrosas; nomeação para o Prémio Mies van der Rohe 1994; finalista do Prémio Secil de Arquitetura 2002.

O arquiteto Manuel Botelho desenvolveu a sua atividade profissional em Portugal, lecionando na Escola Superior de Belas Artes do Porto, entre 1985 e 2009, e na FAUP, nas áreas de Projeto e de Teoria da Arquitetura. Biblioteca da FAUP. (facebook.com/FAUPorto)

Os testemunhos dos alunos validam o seu caráter singular. Jorge Reis, na dissertação de mestrado (2018), sublinha que “a postura de Manuel Botelho diferenciava-se, claramente, não só pela especificidade do tom e ritmo pausado, mas, sobretudo, pela emotividade do seu discurso, pela abordagem lírica às matérias arquitetónicas e pelos inesgotáveis cruzamentos interdisciplinares, já que, nas suas aulas, os estudantes eram confrontados com a filosofia, a pintura, a escultura, a literatura, e desta última, em especial, a poesia”. E Duarte Belo, em “Cidade Infinita”, anota: “Com Manuel Botelho éramos, seus alunos, conduzidos pela descoberta do desenho, pelas possibilidades quase ilimitadas da forma arquitetónica, do jogo de volumetrias, pelas complexas relações espaciais com que temos de lidar. A maior parte de nós entrava ali num mundo desconhecido, belo, difícil e apelativo. Éramos levados pela incessante procura de uma ideia de clareza, de ausência de ruído, da imensa nobreza, solenidade mesmo, da obra arquitetónica, onde não faltava a interrogação, elementos de descontinuidade, a perturbação intencional da ordem óbvia.”

Recorda a FMS que, em 2022, o arquiteto decidiu de doar o seu acervo profissional à Fundação Marques da Silva (FMS) e a sua biblioteca à Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho (EAAD-UM). Por conseguinte, o Centro de Documentação da FMS integra documentação relativa a 67 projetos de Arquitetura da sua autoria, datados, sobretudo, entre 1980 e 2009, onde se identificam alguns concursos, mas, sobretudo, obra construída, desde moradias a grandes equipamentos públicos, localizada no Centro e no Norte do país. O acervo inclui ainda documentação relativa à sua formação em Itália.

A Escola de Arquitetura, Arte e Design (EAAD) está localizada em Guimarães, designadamente no Campus de Azurém, no Instituto de Design de Guimarães – IDEGUI – e na Garagem Avenida.  (arquitetura.uminho.pt)

Para sinalizar este gesto, que garante a salvaguarda da sua obra, permitindo que venha a ser objeto de investigação e estudo, um grupo de ex-alunos – António Neves, Bruno Baldaia, Carlos Maia e Duarte Belo –, apoiado num  trabalho de identificação e inventariação da obra do Arquiteto Manuel Botelho, por si desenvolvido, em colaboração com os bolseiros da Universidade do Minho Bruno Castro, João Costa e Rui Ferreira, programou um ciclo de ações que passaram por três momentos expositivos distintos, por mesas-redondas e por visitas guiadas (fonte: site da FMS):

  • exposição “Território Manuel Botelho – Projeto e Obra”, de 26 de janeiro a 9 de março de 2022, na Galeria de Exposições da FAUP;
  • mesa-redonda “Manuel Botelho. Professor”, a 23 de fevereiro, no Auditório Fernando Távora, na FAUP, com vídeo;
  • visita guiada com António Neves, a 9 de março, na FAUP, com vídeo;
  • exposição “Território Manuel Botelho”, de 6 de abril a 18 de maio de 2022, na Galeria da Garagem Avenida, em Guimarães, tendo constado da Sessão de Encerramento uma mesa-redonda, uma visita guiada com Carlos Maia e o lançamento do livro “Território Manuel Botelho”;
  • Exposição Cartográfica “Manuel Botelho: Obra e Projeto”, de 12 de novembro de 2022 a 21 de janeiro de 2023;
  • lançamento do livro “Território Manuel Botelho – Obra e Projeto 1980/2008” e Mesa-Redonda, a 6 de maio de 2023, na FMS;
  • apresentação do livro “Território Manuel Botelho – Obra e Projeto 1980/2008”, em Coimbra: uma conversa entre Joaquim Moreno, Paulo Providência, os editores do livro, e o coordenador editorial Pedro Baía, a 7 de novembro de 2023, na sala de Projeto 1 do Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra; e
  • apresentação do livro “Território Manuel Botelho – Obra e Projeto 1980/2008”, em Lisboa: uma conversa entre Luís Santiago Baptista, Rui Mendes, os editores do livro e o coordenador editorial Pedro Baía, a 22 de fevereiro de 2024, na Sociedade Nacional de Belas-Artes.

“A Arquitetura só poderá responder às realidades do Mundo e da vida, na síntese de opostos que concilia racionalidade com intuição, lógica com sentimento, disciplina com fantasia, na atmosfera do bom senso que não renega, contudo, o lugar da poesia”, escreveu Manuel Botelho, em “Arquitectura e Identidade”, de 1995.

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Carolina de Medeiros, da FAUP, fala da “permanência da obra de Manuel Botelho”, replicando, não só em parte, o que recolhemos da FMS, mas também fazendo a apreciação valorativa do seu perfil e da sua obra. “Sempre nos ensinou que o vazio e o silêncio têm tanta ou mais importância do que a palavra”, pode ser a frase lapidar com que a comentadora aprecia o notável arquiteto.

Carolina de Medeiros, da FAUP. (linkedin.com/in/carolinamtmedeiros)

Sustenta Carolina de Medeiros que Manuel Botelho foi “professor discreto e atento, cuja formação italiana e o diálogo com a cultura que o recebeu se cruzaram, numa prática e num pensamento comprometidos com o que se fez e se continua a fazer em Arquitetura, em Portugal, contribuindo, de forma significativa para o entendimento do que hoje se reconhece como a “Escola do Porto”. Todavia, mais do que arquiteto e professor, “foi um pensador da Arquitetura”.

José Manuel Soares, corregente de Projeto 1, na FAUP, recorda a forma singular como ensinava e comunicava: “Era o silêncio”. […] Usava o silêncio, intuitivamente, entre as frases. Os pensamentos pausados eram lentos e refletidos, como os desenhos que ia marcando na folha de papel.” Essa forma de comunicar, prossegue, “tinha um impacto muito forte nos alunos e era memorável para quem, desde criança, aprende a valorizar a velocidade e a rapidez como atributos da aprendizagem e da comunicação.”

Além disso, diz José Manuel Soares, “o Manuel Botelho dava, dessa forma, mais valor ao que dizia e desenhava. Sempre nos ensinou que o vazio e o silêncio têm tanto ou mais importância do que a palavra, a música ou o desenho.”

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Sobre a exposição “Território Manuel Botelho”, os organizadores referiam que “propõe um olhar alargado sobre a obra do arquiteto Manuel Botelho”, cuja “singular produção atravessa mais de três décadas e cruza a arquitetura, o design de objetos, a reflexão teórica vertida para a escrita, e a docência”. Assim, ‘Território Manuel Botelho’ reúne uma seleção de projetos de diferentes escalas, programas e enquadramentos que integram o corpo de trabalho de Manuel Botelho.

(eaad.uminho.pt)

Regista o texto de divulgação: “Ao longo da Galeria, a exposição apresenta-se, através de dois olhares distintos que se intersetam e relacionam: por um lado, o registo fotográfico documental, produzido por Duarte Belo (fotógrafo, arquiteto e antigo aluno de Manuel Botelho), do percurso pelo território de espaços construídos e de objetos do arquiteto, bem como pelos espaços do seu quotidiano; por outro lado, através das Maquetes realizadas para esta mostra, pelos bolseiros Bruno Castro, João Costa e Rui Ferreira, da Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho [EAAD-UM], assim como desenhos e esboços e fotografias são apresentadas sete obras determinantes que permitem entender e caraterizar a produção do Atelier Manuel Botelho ao longo do tempo.”

A referida exposição assinalou a entrega da sua biblioteca à EAAD-UM; decorreu de um trabalho de identificação e inventariação da obra do arquiteto Manuel Botelho levada a cabo pelos comissários com o apoio dos bolseiros da Universidade do Minho. E assinalou a salvaguarda dos registos do trabalho de Manuel Botelho, através do depósito do seu acervo na FMS.

Do livro “Território Manuel Botelho – Obra e Projeto 1980/2008” (Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho, 2022), diz o autor, Duarte Belo: “Fazemos uma viagem imersiva pela arquitetura de Manuel Botelho, percorremos uma parte significativa da sua obra construída. Quando, mais tarde, procuramos uma imagem-síntese, deparamo-nos com uma impossibilidade: mais do que uma representação de uma obra arquitetónica, estamos perante uma cidade, uma paisagem. Há, aqui, uma obsessiva exploração do desenho, do detalhe, de algo que em cada projeto é irrepetível e nos surpreende.”

(loja.museudapaisagem.pt)

Prossegue ainda o autor: “Na materialização desta arquitetura, notamos uma ideia de procura permanente. Volumetrias, planos, vãos, espaços de circulação e de pausa, texturas, campos de visão, luz. Mas há algo que continuamente nos escapa na tentativa de apreender esta realidade. Como na complexidade imensa de uma cidade, encontramos em Manuel Botelho um território de espanto.”

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Este arrazoado, mais coligido, do que resultado da minha pena, é consentâneo com a memória que retenho deste grande homem e excelente profissional, seja qual for o ângulo de apreciação que dele façamos, e que marca qualquer pessoa que se tenha encontrado com ele.

Por tudo isto e porque há obras, na diocese de Lamego (de que era natural), por ele inspiradas, e/ou projetadas e acompanhadas, a minha solidariedade com a diocese. E, como é meu dever, aqui deste cantinho de Portugal, endereço à família e, em especial ao seu irmão, D. Jacinto Tomás de Carvalho Botelho, bispo emérito, as sentidas condolências.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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06/11/2025

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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