10 anos de “Taleguinho”

 10 anos de “Taleguinho”

Projeto Taleguinho, de Luís Pedro Madeira e Catarina Moura. (Direitos reservados)

Um projeto da terra, do tempo e da memória

“Taleguinho” é o projeto musical de Catarina Moura e de Luís Pedro Madeira para crianças. Ou um projeto de “costura”, como carinhosamente o apelidam. Neste ano, celebra uma década de existência, com a mesma vontade de “continuar a fazer circular o conhecimento”, contam, numa tentativa de “religar as crianças àquilo que é tradicional”.

 (facebook.com/taleguinho)

Entre histórias, lengalengas e ritmos tradicionais, o casal de músicos e formadores partilha com os mais novos exemplos de variadas manifestações da cultura popular portuguesa, impedindo que fiquem estagnadas no tempo. Esta procura por movimento acompanha a vida do projeto, simbolizada na transformação do uso do taleguinho – “um saco de pano para guardar comida e que agora podemos usar para a maquilhagem”, explica Catarina Moura.

Os repertórios que utilizam nos espetáculos são, muitas vezes, conhecidos por quem acompanha o trabalho dos dois músicos, referências no panorama cultural da cidade. Tendo participado em diferentes projetos musicais, como a Brigada Vítor Jara, Segue-me à Capela e Pensão Flor, foram também membros do Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC), organismo autónomo da Associação Académica de Coimbra.

A criação do Taleguinho surge a partir dessa experiência: “Sempre vi muitas famílias a virem aos espetáculos da Brigada Victor Jara, com filhos e amigos. E achámos que podíamos criar um formato específico para eles, com horários específicos, para que, de facto, pudéssemos ter mais crianças a apropriarem-se do nosso património.”

O auditório do Centro Cultural de Penacova foi palco do projeto de intervenção cultural “Taleguinho”. (cm-penacova.pt)

O objetivo é tornar atual o conhecimento popular e garantir a sua “sobrevivência”. Em 10 anos, criaram oito espetáculos, com temas variados, desde o impacto do passado colonial à reprodução do repertório tradicional nos campos de trabalho; ou associando-o ao Natal.

Tudo começou com um desafio do grupo profissional A Escola da Noite, a companhia de teatro que recebeu o Taleguinho e incentivou a criação de diversos espetáculos, entre os quais “Ficar a Ver Estrelas” e “Mundo ao Colo”. São vários os pretextos para continuar a criar e, principalmente, aprender, como referem Catarina Moura e Luís Pedro Madeira.

.

A formação como ponte para a arte

Foi na academia conimbricense que tiveram o primeiro contacto com a criação de espetáculos. “O GEFAC tornou-me mais humano”, recorda Luís Pedro Madeira, observando: “Todos no palco contam, desde o solista ao técnico de luz.”

Com o Processo de Bolonha2, o aumento do preço da habitação e das propinas, além de outros custos associados à vida universitária, a participação dos estudantes em projetos associativos tornou-se mais difícil. “O papel das secções e organismos na formação dos jovens artistas é indispensável”, sublinham.

(weblog.aescoladanoite.pt)

Entre os mais novos, o panorama também não é animador. Convidado a refletir sobre o papel da escola na promoção da cultura, o casal defende uma maior ligação entre os espaços de ensino e as associações locais: “O teatro e a música vão às escolas, mas a escola também deve vir ao teatro.”

Professor de música, Luís Pedro Madeira lamenta a falta de apoios e de meios que dificultam o acesso dos alunos à cultura. “Um autocarro que fosse às escolas e trouxesse os alunos ao Convento São Francisco, por exemplo, faria toda a diferença”, acrescenta Catarina Moura, licenciada em Ciências da Educação.

.

Novos tempos exigem novos espetáculos

“Passaram rápido!”, comenta Luís Pedro Madeira, quando questionados sobre a década de aniversário do projeto. Novamente, o tempo revela-se um bem precioso para o Taleguinho: “Das coisas mais espetaculares [nos nossos espetáculos] é quando terminamos e os miúdos dizem ‘Oh, já acabou!’… É sinal de que lhes conseguimos captar a atenção.”

Este é um desafio recente, que serviu de missão para o casal: “O período de atenção das crianças é inacreditavelmente menor do que era há uns anos e, portanto, os nossos espetáculos são desenhados para serem estimulantes.”

“Doce Língua Salgada”, sessões para escolas, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra. (facebook.com/taleguinho)

A nova realidade preocupa os artistas, conscientes do perigo da democracia pensada através dos ecrãs. “Acredito que, num espetáculo, se [as crianças] pudessem, passavam cenas à frente com dois dedos no ecrã”, ironiza Luís Pedro Madeira, considerando: “É preciso contrariar isso tudo, inclusive com adultos e adolescentes.”

O último espetáculo em cena, “Medos Y Espantos Limitada”, fala sobre o bestiário tradicional português, um imaginário do folclore nacional, o qual as crianças não contactam nos media digitais. Os espetáculos do Taleguinho, na opinião do músico, “são profundamente formativos” e vão beber a um repertório popular “que, infelizmente, a maior parte das pessoas não conhece”, como completa Catarina Moura.

“Quando não são os artistas a falar para os adolescentes, mas os ‘influencers’ e as redes sociais, temos a democracia em risco”, admitem. “A perda da memória, em Portugal e em Coimbra, está a acontecer por meio dos novos dispositivos digitais, a partir dos quais acedemos a conteúdos online alienados e que promovem o ódio”, alertam Catarina Moura e de Luís Pedro Madeira.

Taleguinho: cantigas como pedacinhos de tecido, cosidas umas às outras como se fossem dias e noites. (dgartes.gov.pt)

Para o Taleguinho, a arte é o ponto de partida e de chegada. A aposta começa cedo, com o propósito de manter viva a cultura tradicional e de projetá-la nas próximas décadas de trabalho do grupo.

O futuro prevê uma longa vida para o projeto. Apesar da falta de apoios, das condições de vida da própria cultura e do público, em geral, a luta de Catarina Moura e de Luís Pedro é a mesma: “Somos um povo não apenas se tivermos um chão comum, mas se partilharmos a memória do sítio onde viveram pessoas”, terminam.

.

………………………….

.

Notas da Redacção:

1 – Este artigo foi desenvolvido, inicialmente, no âmbito do jornal universitário de Coimbra A Cabra, sendo agora publicada uma versão mais completa no jornal digital sinalAberto.

2 – Reforma do ensino superior que Portugal adoptou.

.

10/11/2025

Siga-nos:
fb-share-icon

Ana Filipa Paz

Nascida em 2003, é natural de Coimbra e aspirante a jornalista. Dos seus singelos 20 anos, metade deles tem sido ocupada a escrever, sempre com participações nas áreas da Cultura e do Teatro. Aluna do curso de licenciatura em Jornalismo e Comunicação, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, foi editora de Cultura e é a actual directora do jornal universitário "A Cabra", assim como membro da direcção da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra. Cheia de vontade para mergulhar em projectos novos, é também com muita vontade que se apresenta no jornal "sinalAberto", “fascinada pelo trabalho que aqui se desenvolve e muito entusiasmada para aprender com todos os redactores e colaboradores”.

Outros artigos

Share
Instagram