“Ikiru”: a meditação de Akira Kurosawa sobre viver e morrer

 “Ikiru”: a meditação de Akira Kurosawa sobre viver e morrer

Kenji Watanabe (interpretado pelo actor Takashi Shimura), no filme “Ikiru”. (rottentomatoes.com)

“A ideia da minha própria morte é algo que surge por vezes na minha mente. Sinto que ainda não estou preparado para morrer, e isso deixa-me profundamente inquieto. Há muitas coisas que sinto que tenho de realizar antes de morrer. […] Estes pensamentos perseguem-me e enchem-me de angústia. Ikiru é o resultado destes meus sentimentos. Diante da sua morte, o protagonista do filme apercebe-se [de] que a sua vida foi completamente destituída de sentido… ou, melhor dizendo, percebe que nunca chegou verdadeiramente a viver, e isso impele-o a viver plenamente os dias que lhe restam. O meu obje[c]tivo é criar um retrato intensamente sentido da tragédia que brota das suas próprias circunstâncias.”

Takashi Shimura e Haruo Tanaka têm papéis principais no filme “Ikiru”. (Direitos reservados)

O excerto que inicia este artigo é uma citação de Akira Kurosawa durante a pré-produção do seu filme de 1952, “Ikiru” (também conhecido em Português, pela tradução, por “Viver”), uma das grandes obras-primas da História do Cinema. Kurosawa terá chegado ao pé dos seus colaboradores Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni (com os quais escreveu outras obras-primas como “Os Sete Samurais”, “Trono de Sangue” e “A Fortaleza Escondida”) com uma ideia simples para um filme: a história de um homem a quem só restam 75 dias para viver.

O homem em questão, Kenji Watanabe (interpretado magnificamente pelo actor Takashi Shimura) é um funcionário público que passou trinta anos no Departamento de Obras Públicas de Tóquio sem nunca realizar nada de significativo. Nunca tendo faltado a um dia de trabalho, os seus subordinados estranham quando, um dia, ele não aparece. Ao público, porém, é-nos dada a explicação: Watanabe foi diagnosticado com um cancro no estômago e restam-lhe seis meses de vida. Devastado, este protagonista mergulha numa espiral de desespero e de introspeção, e nós, ao acompanhá-lo, ficamos a saber que enviuvou cedo e que se refugiou no trabalho, “para bem do filho”, apesar de a relação entre ambos ser fria, distante e incapaz de lhe oferecer qualquer tipo de consolo. Consumido por auto-pena e pela constatação de que terá desperdiçado a sua vida, Watanabe decide gastar, de uma só vez, as poupanças que acumulou durante décadas. Guiado por um “Mefistófeles benevolente” – um escritor boémio que conhece numa taberna –, entrega-se a uma noite de hedonismo, repleta de álcool, mulheres, música e restaurantes caros. Contudo, no final da noite, numa cena particularmente comovente, Watanabe dá por si a cantar uma canção da sua juventude – chamada “Canção da Gôndola” –, cuja letra melancólica e nostálgica convida o ouvinte a reflectir sobre a passagem do tempo, sobre momentos perdidos e sobre a brevidade da vida.

Poster de lançamento do filme “Ikiru” nos cinemas. (en.wikipedia.org)

Com lágrimas nos olhos, Watanabe (e nós com ele) apercebe-se de que o prazer e o hedonismo não funcionam como antídoto para a dor, para a angústia e para a tristeza que sente. No dia seguinte, Watanabe cruza-se com Toyo (interpretada por Miki Odagiri), uma ex-subordinada curiosa com a sua súbita e inesperada ausência no escritório. Toyo é o oposto de Watanabe em todos os sentidos: jovial, exuberante, espontânea e de uma energia inocente e quase infantil. Após passar um dia na sua companhia, Watanabe encontra, pela primeira vez, um alívio para a sua dor e tristeza: contacto humano genuíno.

A vitalidade de Toyo é, para ele, uma surpresa e uma revelação, acabando por se sentir irresistivelmente atraído por ela – não de forma romântica, mas porque, nas suas palavras, a sua vivacidade o “enche de inveja”. No entanto, a diferença de idades e a estranheza da relação geram rumores e censuras, sobretudo da parte do filho de Watanabe, levando a um aprofundamento ainda maior do distanciamento entre ambos. Completamente isolado, Watanabe procura novamente Toyo, que, confusa e desconfortável, começa também a estranhar a natureza desta relação.

“Ikiru” , em ambas as partes, centra-se na actuação superlativa e cheia de “nuances” de Takashi Shimura. (blueprintreview.co.uk) 

Depois de decidir encontrar-se com ele uma última vez, Toyo questiona as suas intenções e, pela primeira vez, o funcionário público articula o que lhe vai verdadeiramente na alma: como sabe que vai morrer em breve, procura desesperadamente uma forma de “sentir-se vivo” antes de perecer, usando a vivacidade que Toyo lhe transmite como exemplo de algo que ele gostaria de sentir. Chocada e alarmada com a intensidade da situação, Toyo responde que ela apenas “come e trabalha” e, ocasionalmente, constrói uns brinquedos de corda em forma de coelho. Ao fazê-los, diz, sente uma ligação com as crianças que brincam com eles, e sugere, quase inocentemente, que Watanabe procure algo semelhante. “É tarde demais”, lamenta Watanabe. “Durante trinta anos naquele gabinete, nunca alcancei nada…” Mas, de súbito, os olhos dele iluminam-se: “Não! Não é tarde demais! Ainda há algo que posso fazer!” E sai, completamente decidido, deixando Toyo atónita.

No dia seguinte, os seus subordinados ficam espantados ao vê-lo de volta ao escritório. Nas suas mãos, traz a proposta – apresentada por um grupo de mães no início do filme – para a construção de um parque infantil. Pela primeira vez, Watanabe tem um propósito e, antes de morrer, pode finalmente dar sentido à sua vida. No final do filme, o parque é concluído. E, numa das cenas mais belas e comoventes da História do Cinema, vemos Watanabe, já próximo da morte, sentado sob a neve num baloiço do parque, cantando suavemente a Canção da Gôndola, desta vez – e em contraste com a cena anterior em que a canta – emanando pura felicidade e contentamento.

Takashi Shimura como Kanji Watanabe na cena icónica. (Captura de tela
do filme dirigido por Akira Kurosawa , distribuído pela Toho –
en.wikipedia.org)

“Ikiru” é amplamente considerado um dos melhores filmes da História do Cinema e uma das mais notáveis obras-primas do gigante nipónico Akira Kurosawa. Não é difícil encontrar leituras do filme que o descrevem como um poderoso apelo à afirmação da vida e à capacidade humana de encontrar significado mesmo perante a morte. Ao explorar, com uma intensidade emocional raramente igualada, o inevitável confronto do ser humano com a própria finitude, “Ikiru” aborda temas como o sentido da vida, acabando por ecoar ideias como as de Viktor Frankl, que, em “O Homem em Busca de um Sentido”, defende que a condição essencial para suportar o sofrimento humano é a descoberta de um propósito. Ao acompanhar uma personagem numa jornada de autorrealização individual – o principal traço que define a personagem de Watanabe é a sua solidão, chamando a atenção para a sua individualidade –, “Ikiru” também pode ser lido como uma espécie de “jornada do herói” (algo que o próprio filme ironiza quando, no início, o narrador apresenta o burocrata apático protagonista como “o nosso herói”).

Ao decidir encontrar-se com Watanabe uma última vez, Toyo questiona as suas intenções e, pela primeira vez, o funcionário público articula o que lhe vai verdadeiramente na alma. (blueprintreview.co.uk)

Como Joseph Campbell explorou em “O Herói de Mil Faces”, a jornada do herói consiste, essencialmente, num processo de transformação psicológica e espiritual que se dá através do desapego do ego e de uma entrega a algo maior do que o próprio indivíduo. Esta jornada é representada através de motivos abstratos que podem ser encontrados em mitos fundadores de muitas (senão mesmo de todas) as religiões: inúmeras tradições espirituais, do cristianismo ao budismo, compartilham a ideia de que o sentido da vida se realiza através da compaixão e do serviço aos outros. Já numa leitura mais filosófica, o filme, ao abordar diretamente a angústia da finitude e o vazio que dela decorre, pode ser posto em diálogo com as ideias de pensadores existencialistas como Søren Kierkegaard, cuja noção de conquista da autenticidade se dá com a aceitação da finitude. Ou como Arthur Schopenhauer, ao defender que a libertação do sofrimento humano passa pela renúncia de desejos individuais e da entrega do indivíduo a um bem maior.

No entanto, o filme não se esgota em nenhuma destas leituras. Muitas interpretações de “Ikiru” feitas ao longo das décadas acabam, aliás, por pintar uma imagem extremamente simplista e redutora das intenções de Kurosawa. A verdade é que “Ikiru” pode igualmente ser visto como uma melancólica ilustração da futilidade e da falta de sentido da vida, assim como da necessidade da autoilusão – neste caso, a de Watanabe em querer construir um parque infantil – para suportar o horror da existência humana. Não é necessariamente correcto, portanto, dizer (como muitos disseram e dizem) que “Ikiru” é um filme sobre um homem que (re)descobre o sentido da vida, ou que encontra o valor da caridade ou que se auto-actualiza, ao renunciar ao próprio ego. “Ikiru” oferece muito mais “nuance” do que isso. E é, justamente, essa complexidade – aliada à ausência de sentimentalismo barato, de moralismos explícitos, de respostas definitivas ou de desenlaces reconfortantes – que faz deste filme uma meditação profunda e emocionalmente comovente sobre o sentido da existência.

Watanabe é um burocrata comum, que procurou cumprir o seu dever sem faltar um dia em quase trinta anos, é o herói deste filme. (cineoutsider.com)

É certo que os espetadores podem sentir-se tocados pelo filme ao ponto de quererem procurar um novo sentido para a sua vida, ou de tentar descobrir o valor da caridade, ou de procurar realização através do altruísmo e da rejeição do egoísmo. Mas isso depende de cada espetador. O público extrai do filme aquilo que extrai. Porém, em última análise, “Ikiru” é um filme sobre viver – não sobre como viver.

Uma das chaves para o sucesso de “Ikiru”,  enquanto filme, é a sua estrutura narrativa. O processo de escrita do guião foi particularmente complexo, com Kurosawa e os seus colaboradores envolvidos em intensas discussões sobre a melhor forma de construir a história. Versões iniciais do guião apresentavam uma estrutura cronológica linear, terminando com a morte de Watanabe. Foi então que Oguni teve uma ideia brilhante, que se revelaria decisiva para a eficácia narrativa e para o impacto emocional do filme: matar Watanabe não no final, mas no meio do filme. Esta escolha conferiu ao filme uma narrativa dividida em duas partes claramente distintas. E é, precisamente, essa estrutura que permite a “Ikiru” atingir o nível de introspecção e profundidade emocional que o caracteriza.

Na primeira parte, acompanhamos Watanabe de perto a cada momento, partilhando a sua angústia e empatizando (por vezes, dolorosamente) com o seu sofrimento. Depois de ter a sua epifania e de decidir dedicar o tempo que lhe resta à construção do parque infantil, o filme subitamente (e inesperadamente) dá um salto de cinco meses no tempo.

Durante um longo tempo, a luz não se reflecte nos olhos de Watanabe, um indício de que ele é um morto-vivo (é por isso que a sua colega Toyo, no escritório, o designa “A Múmia”). (cineoutsider.com)

De repente, encontramo-nos já no funeral do protagonista. Toda a segunda parte do filme passa-se num velório regado a “saké”, no qual as restantes personagens procuram decifrar as misteriosas acções do homem que, nos seus últimos seis meses de vida, moveu montanhas para concretizar a construção de um simples parque infantil, mesmo sem obter o mínimo de reconhecimento público e institucional pela realização da obra.

Curiosamente, a segunda parte de “Ikiru” faz lembrar outra obra-prima de Kurosawa, “Rashômon” (de 1950). Nesse filme, um assassinato ocorre e somos confrontados, apenas, com os testemunhos de quatro personagens, cada qual empenhada em defender a sua própria versão dos factos. Ao constatar que a verdade é inatingível ou, no mínimo, inefável, os personagens desse filme envolvem-se numa angustiante e dolorosa meditação sobre a natureza falível, egoísta, autocentrada e subserviente aos próprios interesses que caracteriza a condição humana.

O filme é visualmente belíssimo – repleto de espaços e de movimentos graciosos e ponderados. (magpiesmagazine.co) 

Já em “Ikiru”, o mistério não é quem matou quem nem porquê. O mistério é quem foi Watanabe. O que o moveu? O que sentiu ele ao morrer? Terá sabido realmente que ia morrer? Como será saber que se vai morrer? Mas nós não vamos todos morrer? Não poderei eu morrer amanhã? O que faria eu no lugar de Watanabe? Será preciso encarar a sombra da morte para apreciar, verdadeiramente, a beleza da vida? Será que Watanabe era um bom homem? As intenções de Watanabe eram genuinamente altruístas? Ou foi só o desespero da sua situação que o conduziu ao (que pode ser entendido como) altruísmo? Estas são as perguntas que as personagens no velório colocam – e que, inevitavelmente, nós também acabamos por colocar a nós próprios.

No final do filme (depois de limparmos as lágrimas), apercebemo-nos de que Watanabe é, e permanece fundamentalmente, um mistério. Na primeira parte do filme, somos levados por Kurosawa a empatizar com ele e a sentir a sua dor. Tal acontece, obviamente, graças à mestria de Kurosawa na gramática cinematográfica (enquadramentos, construção de planos, edição, “mise-en-scène”, efeitos sonoros) e à arrebatadora, tocante e profundamente empática interpretação de Shimura (uma das melhores em toda a História do Cinema). Mas também porque Kanji Watanabe – enquanto pessoa e enquanto personagem – é um vazio. Um vazio que nós preenchemos com a nossa própria humanidade. Quando esse vazio é finalmente preenchido – com Watanabe a descobrir um sentido para a vida que lhe resta –, Kurosawa tira-nos o tapete debaixo dos pés, levando-nos subitamente a confrontar, juntamente com as personagens no velório, não com a personagem Watanabe, mas com a pessoa Watanabe.

Watanabe não está pronto para morrer, porque nunca viveu de verdade. (magpiesmagazine.co) 

Porque passámos metade do filme junto dele, a acompanhar dolorosamente cada etapa da sua jornada, achamos (não sem razão) que conhecemos Watanabe melhor do que qualquer um dos presentes. Mas, à medida que o filme se desenrola, percebemos, lentamente, que as coisas não são assim tão simples. A segunda parte do filme passa-se quase inteiramente no velório de Watanabe, com a exceção de pontuais “flashbacks” que, como peças de um “puzzle”, nos exibem, através das memórias (possivelmente, distorcidas e enviesadas) das vivências que os presentes tiveram com ele nesse período, mostrando como, nos seus últimos meses, Watanabe, apesar de todos os obstáculos e da burocracia, conseguiu efectivamente fazer com que o parque infantil fosse construído.

No entanto, cedo nos apercebemos de que (tal como em “Rashômon”) nunca poderemos saber, com precisão, o que Watanabe pensou, sentiu ou desejou nos meses finais da sua vida, porque não estávamos com ele. E é, exactamente, essa ausência de “definitude” que confere ao filme o seu poder emocional, uma vez que damos por nós a fazer o luto de Watanabe juntamente com as outras personagens. E isso dá ao filme uma intensidade emocional muito maior do que se simplesmente estivéssemos a acompanhá-lo, passo a passo, até à morte

O último terço do filme é passado durante o velório de Watanabe,
enquanto os seus ex-colegas tentam entender o que causou uma
mudança tão drástica no seu comportamento. (lisathatcher.com.au)

A empatia que sentimos por Watanabe transforma-se: deixamos de estar nos seus pés para sermos convidados a imaginar o que é que seria estar nos seus pés. Na primeira parte do filme, nós somos Watanabe. A angústia dele é a nossa angústia. O desespero dele é o nossodesespero. A dor dele é a nossa dor. Na segunda parte do filme, Watanabe não somos nós. É outra pessoa. Uma pessoa por quem, porque sofremos com ele, sentimos afinidade. E que morreu. Ao apercebermo-nos disso, somos preenchidos por um intenso sentimento de perda. É por isso que a cena – também ela um “flashback”narrado por um polícia – em que Watanabe canta a Canção da Gôndola baloiçando com uma serenidade quase transcendental, é de uma força emocional de tal forma devastadora que é capaz, como se costuma dizer, de fazer chorar as pedras.

Todavia, a emoção avassaladora que sentimos nessa cena acaba, no final, por não ter aquela catarse que nos permitiria considerar “Ikiru” como um filme inequivocamente inspirador e positivo, apesar de triste. Isto porque, subjacente à conquista de Watanabe, o filme revela um cinismo melancólico e até tragicómico, magistralmente ilustrado nas suas últimas cenas. Depois de reunirem todas as peças do “puzzle” e de compreenderem a história e a motivação por detrás das acções de Watanabe, os seus colegas – todos eles funcionários e administradores públicos –, profundamente emocionados e completamente embriagados, juram, até às lágrimas, seguir o exemplo de Watanabe de se dedicarem ao bem público, prometendo combater a apatia e a indiferença que permeiam as instituições públicas e a sua burocracia. Contudo, na cena seguinte, vemos que nada mudou no escritório. O exemplo de Watanabe não foi suficiente para alterar o “status quo”. Ao constatar isso, um dos funcionários – aquele que, no velório, ficou mais comovido pelo exemplo e pelo carácter de Watanabe – levanta-se subitamente, num gesto de revolta, mas quase tão rapidamente, e sem uma palavra, volta a sentar-se, percebendo que é uma causa perdida.

Toyo adora o seu novo emprego numa fábrica, produzindo coelhos de brincar. Ela diz que, enquanto os faz, sente como se estivesse brincando com todos os bebés do Japão. (magpiesmagazine.com)

No último plano do filme, Kurosawa constrói magistralmente, num único plano, uma imagem que funciona quase como um epílogo visual da história que experienciámos: vemos o parque infantil – a grande obra da vida de Watanabe – numa urbanização onde um parque deste tipo, claramente, salta à vista: debaixo de uma ponte. Sobre essa ponte, iluminado pelo pôr-do-sol – uma alusão a uma cena anterior em que Watanabe comenta nunca ter reparado na beleza de algo tão simples como um pôr-do-sol –, o funcionário que anteriormente tentou rebelar-se contra a apatia do sistema observa o parque com um ar derrotado e desolado, numa postura corporal que pouco difere da de Watanabe no início do filme.

O parque infantil simboliza o poder transformador que um único indivíduo pode ter ao tentar tornar o Mundo um lugar melhor – nem que seja ligeiramente. E, se esse é, de facto, o principal legado de Watanabe, o funcionário apercebe-se de que ele próprio não está – e provavelmente nunca estará – à altura de o continuar. Percebe, também, que talvez nem mesmo aquele parque seja permanente, podendo um dia vir a ser demolido. Porém, uma coisa é certa: naquele momento, as crianças brincam alegremente no parque infantil, completamente alheias a quem foi Watanabe ou ao aparelho burocrático por detrás da existência daquele espaço.

(magpiesmagazine.com)

Neste último plano – sem que uma única palavra seja dita –, Kurosawa condensa e exprime toda a “nuance” e complexidade temática do filme: a alegria, o sofrimento, a beleza, o cinismo, a esperança, o desespero, o sentido de propósito e de determinação que levam homens a empenhar grandes esforços; e, também, a constatação da potencial futilidade desses mesmos esforços. Kurosawa exprime, consequentemente, a forma paradoxal como todos estes elementos dissonantes parecem, ainda assim, compor um todo harmónico, levando-nos a nós, membros do público, a reflectir sobre o que, afinal, significa “viver” (“ikiru”).

Tudo isto faz do filme “Ikiru” uma das obras-primas maiores da História do Cinema, e um exemplo ilustrativo da mestria de um dos maiores gigantes da Sétima Arte: o grande Akira Kurosawa.

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Nota:

Este artigo contém “spoilers” para o filme “Ikiru”, realizado por Akira Kurosawa (de 1952).

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20/11/2025

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Carlos Alexandre Monteiro

Carlos Alexandre Vieira Monteiro nasceu e reside em Coimbra. É investigador no Instituto de Estudos Filosóficos (IEF) da Universidade de Coimbra. Licenciado, mestre e doutorando em Filosofia pela mesma instituição, desenvolve investigação em áreas como Retórica, Teoria da Argumentação, Lógica, Epistemologia, Filosofia da Ciência, Estética, Ética e Filosofia Política. Com artigos académicos publicados e intervenções como palestrante em conferências internacionais, os seus interesses concentram-se na aplicação de conceitos filosóficos a questões que moldam o mundo contemporâneo, incluindo Comunicação em Saúde, Política, Inteligência Artificial, Multiculturalidade, entre outras. Para além da Filosofia, o Cinema constitui a sua maior paixão.

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