A beleza das coisas más

 A beleza das coisas más

“A Cozinha”, pintura de Fernando Botero. (cowleyabbott.ca)

Quando estudei na Universidade de Coimbra, a tasca “Pintos” era um dos meus sítios favoritos. Localizado num ponto de excelência da Alta da cidade – atrás do Museu Machado de Castro, ao lado do Largo de São Salvador –, o Pintos era, à primeira vista, mau. Uma espécie de cave com duas pequenas salas com azulejos, separadas pelas meias paredes da cozinha, o balcão em frente às escadas da entrada.

“Pintos”, tasca histórica da Alta de Coimbra. (facebook.com/Pintosbar)

No cimo da parede da cozinha, havia um frasco de mostarda que já devia estar quase a acabar a licenciatura. A bebida típica do Pintos era o “traçadinho”, uma mistura de vinho branco e gasosa, servido em garrafas de plástico do refrigerante, com vinho de garrafão, que víamos ser descarregados de carrinhas na precária inclinação da Rua do Cabido. Também faziam jantares, desde que a opção fosse carne e batatas. Tudo frito, claro. Com a tal mostarda, para os mais corajosos. Os tempos que passei no Pintos estão no topo das minhas memórias dessa época. Era tão mau que era bom!

“La Oveja Negra”, em Barcelona. (facebook.com/GrupOvellaNegra)

Década e meia (e dois países) depois, apercebo-me de que ando pelo Mundo à procura de outro sítio onde me possa sentir assim. Em Barcelona, passei tempo em “La Oveja (Ovella) Negra”, um bar fechado que mais parece uma caverna perto das Ramblas, e que cheira sempre a desinfetante de casa de banho; ou a “Bodega Sopena”, uma adega onde nos podíamos sentar na parte de trás, ao lado das caixas, quando a parte da frente enchia, no conforto quente das barricas de vinho. Em Londres, ainda não encontrei nada assim. Acho que, num mundo tão caro, teria de ir aos confins do Norte de Inglaterra para encontrar algo deste nível. A não ser, claro, que entre num pub da cadeia J.D. Wetherspoons.

“Bodega Sopena”, em Barcelona. (baresautenticos.com)

Os pubs “Spoons” estão pensados para apelar ao mercado de massas, através de uma oferta incrivelmente barata, combinada com uma diversidade de comida tremenda: pequenos-almoços ingleses, comida indiana, pizzas, frango frito, etc. Tudo de qualidade medíocre para baixo, mas amigo da carteira. Por isso, mais do que num pub normal (onde um “pint” pode custar a partir de sete libras), num Spoons vamos encontrar uma combinação de pessoas do bairro, estudantes universitários ou, como vi no outro dia, o zelador do edifício onde vivo. Por ter tanta gente que, no fundo, quer beber muito e barato, um Weatherspoons é considerado mau. Eu, sempre que viajo no Reino Unido, faço questão de ir a um para ver uma amostra da sociedade real. Ou, pelo menos, com menos filtros.

Não sei de onde virá este amor pelas coisas más ou algo toscas, mas acho que é porque no tosco existe um núcleo cheio de autenticidade. Podemos ir a um restaurante ou bar de luxo e ter uma experiência organizada de maneira criteriosa, com cada momento, sabor e interação bem orquestrados, mas que, no final, não deixam de ser uma encenação. Não que haja mal nenhum nisso, também existe prazer no luxo, mas é diferente de uma interação genuína. Cuidado, claro, porque isto tanto pode ser bom como mau. Do ponto de vista romântico desta crónica, o tosco é bonito. Apanhar uma intoxicação alimentar, porque se comeu num sítio sem higiene, nem por isso.

Monkey D. Luffy (também conhecido por Luffy do Chapéu de Palha) é um personagem fictício e o protagonista da série “One Piece”, criada por Eiichiro Oda. (x.com/Hoshy_Mark/status)

Este tipo de interesse mórbido vai além de bares e de comida, estendendo-se a diferentes partes da cultura. Há filmes e séries que se tornam de culto porque são tão maus que acabam por ser bons. Por exemplo, o “The Room” foi tão hilariantemente mau – atuação, edição, história e diálogos – que teve direito a um filme sobre si. Ou, um dos meus favoritos, a saga “Torrente” (em Portugal, “O Braço Errado da Lei”) que chega de Espanha e acompanha um polícia asqueroso pelas ruas de Madrid, entre incompetência, corrupção e devaneios sexuais. É mau de propósito, mas a verdade é que fizeram cinco filmes sobre o personagem. “O Padrinho” só teve três.

O ator e cineasta polaco-americano Tommy Wiseau ficou famoso por
escrever, dirigir, produzir ‘The Room‘, o filme considerado, até o hoje, o
pior do Mundo. (cinepop.com.br)

Para mim, gostar de coisas más não é uma questão de superioridade, de obter prazer devido ao desleixo dos outros, mas, sim, de aceitar que o mundo real é sujo, algo perigoso e nem sempre higiénico. É ligar-se com um grau de realidade ao qual, normalmente, colocamos barreiras. É abrir os olhos a pequenos prazeres mesmo que venham em pacotes mais toscos. Quem entrava no “Pintos”, estava sempre entre iguais e sem grandes inibições. O senhor Luís a despejar garrafões de cinco litros em garrafas de gasosa, o cheiro a fritos, a parvoíce sem filtro. O que se via era o que havia e, feitas as contas, que mais é que precisamos na vida? Esta crónica, se calhar, não é apenas sobre coisas más. É também sobre quando a vida era mais fácil e se era autêntico por definição, com as limitações da vida adulta ainda bem lá ao longe.

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01/12/2025

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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