A esperança na palavra e o preço do silêncio

(Imagem gerada com IA – br.freepik.com)
As palavras ajudam-nos a superar muitas incertezas. Ou, pelo contrário, a afundarmo-nos nas indeterminações, porque nem sempre fazem parte das respostas que nos podem dar algum sentido à existência. Todos queremos encontrar um propósito para a nossa presença no tempo que nos acolhe na sua grandeza, mas, muitas vezes, questionamos – como simples filósofos imediatistas – até o significado de muito do que ainda está por dizer.
E isso, se não nos amparar no perfeito autoconhecimento e na necessária compreensão dos outros, conduzir-nos-á, ao menos, pelos caminhos que nos desembaraçam a lucidez ou que nos fazem pensar sobre a nossa realidade, nas suas múltiplas interpretações.

Viver com significado e em comunidade, fortalecendo a colaboração, não é um estado permanente, atendendo à alteração das premissas do tempo e do espaço de convívio e de partilha. Os conceitos e as ideias que agora temos de nós e sobre aqueles que connosco se relacionam vão mudando ao sabor das circunstâncias e da forma como, dia após dia, vamos observando o que nos rodeia. Os próprios vocábulos transformam-se, apesar dos contextos em que se possam resguardar.
Na dicotomia do corpo e da mente – que as palavras têm o poder de unir e de revelar –, importa que não desistamos de quem somos e que tenhamos a sabedoria de arriscar, sobretudo, no diálogo fértil e criativo. Como sublinhou o Papa Francisco, há cerca de dois anos (no Dia Internacional da Alfabetização), “educar é sempre um acto de esperança”.

Ao atribuir um significado à expectativa da solidariedade intergeracional e dos afectos, o Papa convidava-nos, então, “a transformar a lógica estéril e paralisante da indiferença numa lógica capaz de acolher a nossa pertença comum”. Ou seja, as mudanças inevitáveis da significação das palavras e das imagens mentais devem ser acompanhadas pelo processo educacional. Para isso, como defende Francisco, é necessário construir uma “aldeia educativa” onde se partilhe, “na diversidade, o compromisso de criar uma rede de relações humanas e abertas”.
A respeito da acepção, por vezes, desconcertante das palavras e dos actos, é paradigmática a escrita de Albert Camus, particularmente no seu primeiro romance (“O Estrangeiro”, publicado em 1942), no qual se joga o destino de um homem perante o absurdo, questionando o sentido da existência. Como prefacia António Mega Ferreira – numa edição portuguesa de 2015, a partir da tradução de António Quadros –, a morte natural da mãe de Meursault, nascido em Argel, “vai tornar-se o motor de um drama com fim anunciado”.

O seu “gesto injustificável”, ao ter disparado cinco tiros sobre um árabe que mal conhecia e que perseguia outro (Raymond), leva-o a compreender que “destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz”. Com efeito, como também repara Mega Ferreira, a teia processual transforma-se numa situação kafkiana (aludindo ao romance “O Processo”, de Franz Kafka), porque “exprime a impotência do indivíduo diante de um sistema que o condena independentemente da sua vontade, das suas razões e da justiça da causa”.
Afinal, o argelino Meursault, embora tenha assumido o seu crime, ainda esperava beneficiar de “uma certa protecção de humanidade” e de mais atenção. Para Platão – que foi discípulo de Sócrates e que escreveu sobre a amizade, a política e a justiça, entre outros temas que ainda hoje nos preocupam –, a justiça, enquanto eixo gravitacional, faz-se rodear de um trio elementar: o autodomínio, a coragem e a sabedoria. Nesta conjuntura, é preciso saber qual é o peso das palavras ou quanto vale o silêncio.
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 6 de Outubro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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07/10/2024