A Europa sem os Estados Unidos da América

 A Europa sem os Estados Unidos da América

(© Marco Dias Roque)

Bebemos Coca-Cola enquanto comemos um hambúrguer no McDonalds, ou levamos o takeaway e jantamos a ver “Friends” no Netflix. Falamos com amigos no WhatsApp, publicamos fotografias no Instagram, ouvimos músicas no Spotify ou no YouTube. Uma noite normal em qualquer lugar, com um fio comum: a cultura americana. Os Estados Unidos da América (EUA) são a força dominante da cultura ocidental, uma realidade mais recente do que parece. A hegemonia cultural dos EUA começou a tomar forma no pós-Segunda Guerra Mundial, quando o coração industrial da Europa estava em ruínas, e os EUA estavam prontos para ajudar à reconstrução com o Plano Marshall. Com esse apoio financeiro à reconstrução, veio o dólar como moeda central e a abertura da Europa às exportações culturais americanas, interiorizando os seus valores.

(Imagem gerada por IA – blackbox.ai)

Durante a Guerra Fria, as tensões entre os EUA e a União Soviética continuaram a aquecer e, numa Europa pouco interessada a entrar em guerra outra vez, a luta tornou-se ideológica, com a propaganda como arma principal. Filmes, rádio e livros reforçaram a narrativa de americanos heroicos a resgatar-nos dos perigos do totalitarismo, primeiro dos nazis, depois dos soviéticos. Baseados numa cultura comum, os valores americanos foram bem recebidos e tornaram-se a norma. Num filme de ação, todos nos sentimos um bocadinho norte-americanos. Em paralelo com as vitórias culturais, chegaram as de produção. Se a América existe para nos salvar, o estilo de vida que defende – isto é, o consumismo – terá de ser positivo. Com a queda da União Soviética nos inícios dos anos 90, a vitória cultural foi completa. O Inglês tornou-se a língua dominante, as séries e filmes norte-americanos os mais vistos, mesmo perante alguma resistência europeia que surgiu na forma de bolsas culturais, que apoiaram muito do cinema europeu. A chegada das redes sociais não foi mais do que a conclusão deste movimento que, ironicamente, criou uma geração global que critica muitas destas narrativas.

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Apesar disso, muita gente – tanto dentro, como fora do país – continua a olhar para os Estados Unidos como um país de heróis, ignorando as partes negativas. Enquanto a propaganda apregoava os valores da liberdade, os EUA continuavam a viver numa sociedade com divisões raciais e apostar em intervenções na América Latina que resultaram em dramas humanitários e milhares de mortos. Nunca nenhum império foi inocente: muita gente morreu de fome na União Soviética, os impérios coloniais europeus massacraram e escravizaram milhões de pessoas. Talvez por isso, ontem como hoje, muitos europeus continuem a ser fãs de algumas das políticas dos EUA sem questionar a narrativa de medo perpetuada, atualmente, mais focada em imigrantes ou questões de género.

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Aceitámos estes valores voluntariamente e eles ajudaram a moldar a identidade do Ocidente. Por isso, não é uma surpresa que, se os EUA estão divididos, os Europeus também. Contudo, se a primeira eleição de Donald Trump confirmou que os valores americanos não são mais do que uma cortina de fumo, a segunda representa um aviso final. A Europa, caso queira manter um determinado estilo de vida, tem de se preparar para viver sem a rede de segurança proporcionada pelos Estados Unidos.

Se esta fosse apenas uma questão cultural, não seria tão urgente, mas, o facto é que existe também uma dependência militar nos Estados Unidos. A criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, ou NATO na sigla em Inglês) serviu como um escudo que unificou a Europa Ocidental e a protegeu contra outras guerras. O problema é que existe uma guerra na Europa, agora mesmo, e que, quando se espalhar, não acabará na Ucrânia. Se a Rússia atinge os seus objetivos, será apenas uma questão de tempo até que vire a sua atenção para outros países. Se, com a nova liderança, os Estados Unidos da América abandonam o seu papel de protetor – ou o tentam utilizar para outros fins –,  o que resta da NATO terá de ultrapassar indecisões internas e entender que a cavalaria não vem a caminho.

(Imagem gerada por IA – blackbox.ai)

A solução para abandonar esta dependência passa pelo reforço da União Europeia, mesmo que a ideia de uma federação continue a ser controversa. Com movimentos nacionalistas e populistas presentes por toda a Europa, é pouco provável que qualquer país abdique da sua soberania, mas um continente de políticas comuns seria um elemento de equilíbrio num sistema geopolítico imprevisível. Embora algumas das preocupações sobre a perda de identidade possam ser válidas, o populismo tende a ignorar os benefícios da integração de diferentes culturas – ou a possibilidade de manter identidades nacionais dentro de uma união. Mesmo sem uma federação, a prioridade tem de passar por uma política de defesa comum que deixe a Europa preparada para uma guerra à porta. Apenas uma presença militar forte pode garantir a estabilidade do continente e impedir a expansão de atores geopolíticos mais agressivos, particularmente quando o papel das Nações Unidas e da NATO é cada vez mais limitado.

Enquanto a Europa enfrenta ameaças militares diretas, a dependência económica de outras potências, como a China, torna o cenário ainda mais complexo. A China é o grande produtor industrial do Mundo, com uma política externa criada para expandir a sua influência de maneira mais ou menos óbvia. Durante a crise da covid-19, o abrandamento da produção europeia, dependente de contentores da China, evidenciou o perigo desta dependência. A Europa precisa de produzir mais e equilibrar o protecionismo local com a interdependência global e, se possível, aproveitar-se da guerra comercial que se avizinha entre Americanos e Chineses.

Cidade Proibida, em Pequim, na China. (Créditos fotográficos: Ling Tang – Unsplash)

A União Europeia tem de ser diferente dos Estados Unidos da América. As ações tomadas para legislar a inteligência artificial (IA) ou para controlar empresas, como os monopólios criados pelas “big tech” –  com o Regulamento Geral de Proteção de Dados ou a Lei dos Mercados Digitais, por exemplo  –,  podem limitar o crescimento, mas criam defesas contra oligarquias como a que se começa a ver nos EUA. A dominação cultural, tecnológica, industrial e militar dos EUA continuará a ser parte do nosso mundo. Contudo, isso não significa que as coisas não mudem. No início do século XX, poucos poderiam ter previsto o declínio dos poderes europeus.

Em 2025, completaremos o primeiro quarto do século XXI, se a Europa não tomar medidas decisivas para se unir e liderar, arrisca-se a repetir os erros que a fragmentaram no passado.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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12/12/2024

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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