A falácia da novidade

 A falácia da novidade

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Desde que, há milénios, alguém se lembrou de trocar bens que tinha em excesso por outros de que precisava – uma prática que remonta à Pré-história, mas que mesopotâmios, egípcios e, sobretudo, fenícios, desenvolveram em larga escala – os seres humanos perceberam que a novidade vende. E a verdade é que, passados milénios, continuamos a pensar exatamente da mesma forma. Como disse o biólogo, naturalista, ecologista e entomologista americano Edward Osborne Wilson, muitas das nossas ações decorrem do facto de termos emoções paleolíticas, instituições medievais e tecnologias todo-poderosas.

A questão que nos importa aqui é, precisamente, a das tecnologias que, apesar de nos dotarem de um poder que, há poucas décadas, nos pareceria divino, são também, elas próprias, vítimas desta lei universal: para que um produto ou serviço – tecnológico ou não – venda, tem de ter a aura da novidade. A novidade atrai os consumidores através da curiosidade, da sensação de exclusividade e da promessa de melhorias ou de novas funcionalidades, e isso tem uma força de tal modo grande que move a economia à escala mundial.

Tomemos como exemplo um telefone móvel. Quem não tem hoje um destes dispositivos, apesar de alguns custarem muito mais do que o salário médio em Portugal? No entanto, quantas pessoas necessitam do poder computacional, da capacidade de armazenamento e da elevadíssima resolução das câmaras de um telemóvel de topo? Hoje, um destes dispositivos tem tanto poder computacional como o melhor supercomputador de há trinta anos, mas a realidade mostra-nos que ninguém precisa disso no dia-a-dia. Apesar disso, sempre que aparece um novo modelo – forçosamente ainda mais poderoso –, muitos não descansam enquanto não o compram e se desfazem do equipamento “obsoleto” que tinham há já dois ou três anos. Mas também acontece algo parecido, embora em menor grau, com outros bens, como automóveis, computadores pessoais, televisores, eletrodomésticos, roupas, acessórios e, em geral, tudo o que se compra e vende.

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Pode dizer-se que, pelo menos no caso das tecnologias, são os fabricantes que impulsionam essa troca, pois é do seu interesse, utilizando técnicas geralmente conhecidas como obsolescência programada. Nesta matéria, destacam-se alguns tipos de obsolescência, como sejam a obsolescência técnica, a obsolescência funcional, a obsolescência estética e a obsolescência por incompatibilidade.

No caso da obsolescência técnica, o produto é projetado com componentes que têm uma durabilidade inferior ao que seria tecnicamente possível. Como exemplo, refere-se o caso da utilização de baterias seladas que, quando chegam ao seu fim de vida, são difíceis ou impossíveis de substituir, levando a que o produto seja descartado, apesar de as restantes componentes estarem perfeitamente operacionais.

Já no caso da obsolescência funcional, o produto deixa de suportar novas funcionalidades ou novas versões software. São comuns os casos de smartphones que deixam de receber atualizações ou de aplicações que deixam de funcionar em sistemas antigos.

Uma outra forma de obsolescência, quiçá uma das mais poderosas, é a obsolescência estética. Neste caso, o fabricante muda com frequência o design do produto para fazer o consumidor sentir que o modelo que detém está ultrapassado, levando-o, assim, a adquirir um novo produto que, na maior parte das vezes, é perfeitamente equivalente ou até inferior ao equipamento “antigo” em termos funcionais.

Por fim, refere-se a obsolescência por incompatibilidade. Neste caso, o fabricante desenvolve novos acessórios, formatos ou protocolos que deixam de ser compatíveis com versões anteriores, tornando o uso dos modelos antigos bastante limitado e pouco prático.

(Imagem de domínio público gerada por IA)

É claro que tudo isto tem um impacto que não é desprezável, quer em termos sociais quer ambientais, levando ao aumento de resíduos eletrónicos – um dos fluxos de lixo que mais cresce no Mundo – ao uso intensivo de recursos naturais (como metais raros e energia), a custos financeiros para os consumidores e, ainda, ao desperdício injustificado, já que há dispositivos que deixam de ser utilizados, mesmo estando perfeitamente operacionais.

Esta realidade tem levado ao aparecimento de movimentos que tentam combater a obsolescência programada. Por um lado, existe já legislação europeia que combate práticas de obsolescência artificial e incentiva o chamado ecodesign, cujo objetivo é o de criar produtos mais sustentáveis, eficientes e duráveis, através de escolhas conscientes de materiais, otimização energética e foco na reutilização e reciclagem. Por outro lado, cada vez mais pessoas defendem o direito à reparação (Right to Repair), que obriga os fabricantes a disponibilizarem peças e manuais, e a darem ao consumidor a liberdade de escolher se quer reparar um produto, onde o quer reparar e a quem quer pagar, em vez de ser obrigado a aceitar os termos do fabricante.

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Ao mesmo tempo, cresce a pressão para que os produtos sejam concebidos com modularidade, permitindo a substituição de componentes individuais sem necessidade de descartar o aparelho inteiro. Esta tendência acompanha uma mudança lentamente consolidada no comportamento de alguns consumidores, que começam a valorizar mais a longevidade e a possibilidade de reparação do que a constante novidade.

Importa reconhecer, contudo, que nem toda a obsolescência é mal intencionada. A inovação tecnológica, sobretudo no domínio digital, evolui a um ritmo extremamente elevado. Melhorias de desempenho, segurança, eficiência energética e funcionalidade obrigam, muitas vezes, a sacrificar a compatibilidade com equipamentos antigos. Por outro lado, os consumidores valorizam produtos leves, elegantes e potentes, características que implicam compromissos estruturais, como baterias embutidas ou arquiteturas mais compactas. Ainda assim, o equilíbrio entre evolução tecnológica e durabilidade permanece uma questão fulcral.

A obsolescência programada é um tema que liga economia, ética, sustentabilidade, engenharia e cultura de consumo. É certo que põe em causa as práticas de grandes empresas, mas, na sua génese, está, indubitavelmente, a apetência dos consumidores pela novidade contínua, a falácia de que o que é novo é melhor (argumentum ad novitatem), o tal impulso incontrolável que vemos não só nesta como em todas as épocas natalícias, e que nos acompanha desde tempos imemoriais.

.

01/12/2025

Siga-nos:
fb-share-icon

Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

Outros artigos

Share
Instagram