A fantasia cresceu e foi trabalhar

Filme “The Matrix”. (cbr.com)
Toc-toc, toc-toc. Algo raspa contra o vidro, ouves o som abafado de umas asas que cobrem o sol que entra pela janela. Toc-toc, toc-toc. A insistência do ruído acaba por captar a tua atenção e levantas a cabeça dos trabalhos de casa dessa tarde. Olhas para a janela e vês uma coruja-das-neves enorme. Ela olha para ti com olhos inteligentes e, com um ar impaciente, deixa cair uma carta no parapeito. Abres a janela com cuidado, não vá a carta voar. Sem ver remetente nem destinatário, rasgas o envelope. Sabes que é para ti. “Temos o prazer de informar que V. Sa. tem uma vaga na Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts. Por favor, encontre em anexo uma lista com todos os livros e materiais necessários.” Chegou a tua a hora, foste escolhido. Sim, és especial. Segue em frente e deixa a vida normal para trás.

Já não temos idade para admitir isto, mas a geração nascida nos anos 80 e 90 terá fantasiado, muitas vezes, com o cenário do parágrafo anterior. Um evento inesperado que ajudasse a escapar da vida normal e que nos levasse a um mundo fantástico, longe dos problemas da adolescência e das incertezas do futuro. Um mundo onde tudo acaba bem, no qual os bons e os maus são figuras bem definidas. E, sem dúvida, onde estamos sempre do lado dos heróis. Este sentimento não aparece pela primeira vez nos romances ou na série de filmes “Harry Potter”, pois, outras gerações tiveram fantasias escapistas codificadas em diferentes histórias.

O Reino Unido é prolífero a este nível: antes do Harry Potter, já tinham entrado noutros mundos a Alice, que chegou ao País das Maravilhas atrás de um coelho branco; ou as várias crianças que entraram por um guarda-roupa para escapar dos horrores da guerra e descobrir um mundo mágico na série “As Crónicas de Nárnia”. Temas só para crianças? Nem por isso. Um filme como “Matrix” – em que o protagonista é um escolhido para salvar o mundo – toca os mesmos temas básicos destas histórias. Aliás, os adultos até precisarão mais de escapismo do que as crianças.

Por exemplo, é outra segunda-feira em que tens reuniões às nove da manhã, depois de um comboio cheio de gente ou de um trânsito infernal. “Por que é que isto ainda não foi entregue?”, grita um chefe, indistinguível de outros chefes pelo Mundo fora, escolhendo ignorar todas as dependências à volta do pedido ou, até, de que já está tudo feito.
Noutra reunião, enquanto respondes à mesma pergunta pela enésima vez, dás por ti a sair do piloto automático e decides que hoje é o dia. Não voltas a trabalhar nunca mais. Pela tarde, entras num escritório da Lumon para assinar os papéis para a tua “Separação” (ou “Ruptura”. Nesta série (“Severance”, no original), os personagens principais aceitam fazer um procedimento que divide o seu cérebro e personalidade em dois: uma versão interior, para o trabalho, e outra exterior, para tudo o resto. Sem memórias partilhadas, uma pessoa torna-se duas: uma que trabalha oito horas por dia e a outra que desfruta do salário e a vida normal. Se evitamos pensar que não temos controlo nem memória do que acontece ao nosso corpo durante o período laboral, não é mau negócio para quem está fora. Pena é para a versão que sofre dentro.

As fantasias crescem com as pessoas e a série “Separação” (ou “Ruptura”) é um exemplo de como, embora fiquemos mais cínicos, o desejo de alguma mudança que torne as nossas vidas mais toleráveis continua lá. Existe, contudo, uma diferença básica entre fantasias adultas e juvenis: o poder da nossa escolha. Na série “Harry Potter”, tens de ir a Hogwarts. Em “Severance” ou no “Matrix”, a escolha é tua: se continuas com a tua vida ou arriscas tudo por uma versão mais interessante. Uma das diferenças básicas entre ser um adulto ou uma criança é poder escolher o que fazer (ou não).

Nunca se pode ganhar: os jovens têm todo o potencial por realizar e os adultos só pensam no potencial perdido. Por isso, mesmo que percam algum do seu brilho, as fantasias continuam. Deixamos de acreditar em mundos mágicos, porque é coisa de miúdos. E passamos a preferir ficções sérias com temas adultos, com os quais nos podemos relacionar melhor. Mais cínicos e com mais bagagem emocional, mas com necessidade de encontrar histórias que nos ajudem a dar sentido ao Mundo e, sobretudo, às nossas vidas.

Unidos da América. (Alireza_Taghizadeh083 / IMDb/Divulgação –
super.abril.com.br)
Crescer é entender que vamos errar de inúmeras maneiras até chegarmos aonde temos de chegar. Num outro dia, li uma frase que resume bem isto: “Experiência é o que recebemos logo depois que precisamos dela.” Ou seja, quando chega, já vem tarde. Mas isto é viver. Mesmo que houvesse escolas de ensinar a ser adulto, ninguém ia entender o conteúdo até ser tarde demais. E crescer também é uma sequência de sacrifícios.
Sempre que escolhemos fazer uma coisa, sacrificamos muitas outras. Não há mal nenhum nisto, ninguém pode fazer tudo. Nem tudo é mau, pelo caminho vamos aprendendo alguma coisa e, se soubéssemos tudo desde o primeiro dia, a vida seria muito monótona. Mesmo sem cartas enviadas de Hogwarts nem os comprimidos vermelhos do “Matrix”, crescer é perceber que a magia nunca esteve em mundos paralelos, mas na forma como escolhemos olhar para a nossa própria vida. Não precisamos de ser escolhidos para uma grande missão – podemos, sempre, escolher reinventar a nossa história, um bocadinho de cada vez.
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10/04/2025