“A Luz da Cal”

 “A Luz da Cal”

(dererummundi.blogspot.com)

“A Luz da Cal” é o título de um belo livro com texto de Urbano Tavares Rodrigues e fotografia de António Homem Cardoso. Evoca as casas caiadas de branco dos campos do Alentejo.

(bythebook.pt)

Para haver cal é preciso haver caleiros. E nós conhecíamos um que não só a fabricava como a vendia de porta em porta. Todos os anos, umas semanas antes da Páscoa, percorria as ruas da cidade numa carrocita puxada por uma mula e coberta por um toldo, servindo uma clientela sempre certa.

Fazer caianças em casa nos primeiros dias de sol, findo o Inverno, era uma tradição do Alentejo rural que muitas famílias da cidade continuavam a respeitar. Nos montes, as paredes exteriores e interiores das casas, quase todas térreas, eram caiadas de pincel na mão até à altura do estender do braço e com o dito na ponta de uma cana, daí para cima.

(Créditos fotográficos: João Prates – Unsplash)

Na cidade, com prédios de dois e mais andares, a caiança dos exteriores era entregue aos cuidados de caiadores, acrobaticamente empoleirados em grandes escadas de encostar à parede. E com os pincéis sabiamente amarrados na extremidade de compridas canas, estes profissionais de trabalho incerto e arriscado não dispunham de qualquer protecção. Trabalhavam por conta própria e, em caso de acidente, não havia seguro que lhes valesse.

Nas residências das famílias mais desafogadas, havia pinturas dos interiores e esse trabalho era entregue a profissionais, considerados artistas e habitualmente designados por pintores. Nestas pinturas, a base da tinta era sempre a cal, sendo que as cores pretendidas se obtinham misturando-lhes, com mestria, certas anilinas à venda nas drogarias. Nas da generalidade da população não havia pinturas, havia, simplesmente, caianças e essa tarefa, quase um ritual, era feita pelas mulheres da casa, com a cal que compravam ao caleiro.

(Direitos reservados)

Sentado no varal da carrocita, o Júlio “Caleiro”, de há muito conhecido da minha mãe, parava sempre à nossa porta, pois sabia ter ali freguesa certa. À semelhança do que era regra nos montes, muitas famílias da cidade faziam as suas caianças uns dias antes da Páscoa. Mandava o brio das alentejanas que, entre os Ramos e o Domingo de Festa, tudo reluzisse de brancura.

Na caleira que herdara do pai, o Júlio arrancava a pedra a tiros de dinamite e partia-a a guilho e a golpes de marreta, até terem o tamanho adequado a encher o velho forno. Empilhada a preceito, esta montanha de calcário transformava-se em cal-viva, branca de neve, pela acção do fogo intenso de feixes de lenha, sabiamente metidos na base. Esta cal, bem seca, era guardada num barraco, protegendo-a de eventuais chuvas e, depois, era só encher a carroça, tantas vezes quantas as necessárias para servir a numerosa freguesia.

– Cal branca! – Ia apregoando. – Arre mula! Anda, Violeta!

(Créditos fotográficos: João Reguengos – Unsplash)

Não raras vezes, começando de manhãzinha cedo, carregado à medida da força do animal, chegava ao meio-dia com o carro vazio.

O tempo chuvoso era mau para o negócio. A humidade estragava-lhe a cal, mesmo a que estivesse ao abrigo da chuva.

A minha mãe comprava-lhe sempre umas pedras de cal que metia num pote de barro próprio para esse fim, a que depois juntava a quantidade de água necessária. Esta operação que despertava grande curiosidade, emitia um som de água a ferver e libertava calor. Um processo químico que só mais tarde compreendi, quando me foi explicado, numa aula do liceu, o que era uma reacção química exotérmica. No outro dia, a cal de caiar estava pronta a ser usada.

– É boa a sua cal, este ano, senhor Júlio? – Perguntava a minha mãe. – Olhe que a do ano passado já não tinha força. Estava meio-morta.

– Foi do tempo, Dona Adília. Toda a gente se tem queixado. Choveu a maior parte do ano. Quase não tivemos Verão e não ganhei para o trabalho que tive. Mas esta, este ano, é da melhor que já fiz. Está bem viva. Vai ver quando a derregar.

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20/01/2024

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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