A “rentrée” do Teatro Nacional São João
O mês de Setembro é o início da temporada teatral no Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto. No dia 10 de Setembro, foi divulgada a programação artística para o período entre Setembro e Dezembro de 2024, numa sessão que decorreu na segunda casa do TNSJ, o Teatro Carlos Alberto.
Pedro Sobrado, presidente do Conselho de Administração (de regresso ao TNSJ) e Nuno Cardoso, director artístico, apresentaram, nessa altura, à imprensa, as próximas produções próprias, bem como coproduções, digressões, projectos educativos e demais iniciativas do Teatro Nacional São João. A nova temporada traz seis estreias absolutas, entre as quais duas produções próprias e quatro coproduções. Um programa comemorativo dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões e a Conferência Internacional de Dramaturgia marcam a programação do teatro nacional portuense para os próximos quatro meses.
O regresso aos palcos de Nuno Cardoso, o actor “genérico”, na sua definição. Se adentra no universo dos homens hediondos… De facto, de 11 a 14 de Setembro, no Teatro Carlos Alberto, foi apresentada a peça “Homens Hediondos”, de David Foster Wallace, com encenação de Patrícia Portela. Assim, questiona-se na respectiva sinopse: “Quem são os ‘homens hediondos’? Criaturas feias, repugnantes, monstruosas? Ou pessoas banais com quem nos relacionamos todos os dias, no trabalho, nos transportes, nos cafés, em casa?”
A resposta encontrar-se-á nessa “imensa maioria que perpetua os mesmos comportamentos e relações de poder, e cuja violência muitas vezes aceitamos em nome da ‘estabilidade’ e do ‘nosso estilo de vida’ ”. Como elucida a sinopse do espectáculo, a nova criação de Patrícia Portela, um solo interpretado por Nuno Cardoso, parte do livro “Breves Entrevistas com Homens Hediondos” (publicado em 1999), da autoria do escritor norte-americano David Foster Wallace, “para nos confrontar com aqueles momentos em que somos apanhados a tolerar um sistema que tão a[c]tivamente condenamos”.
Saudamos o feliz regresso do actor Nuno Cardoso. neste espectáculo de 90 minutos. Não pretendendo ser este meu artigo uma crítica teatral, não posso deixar de destacar a portentosa interpretação que nos prende durante o tempo de representação, graças às “capacidades metamórficas e camaleónicas de Nuno Cardoso”, numa breve temporada. Esperamos que se repita, proximamente.
Também no Teatro Carlos Alberto, entre 19 e 22 de Setembro, esteve em palco o espectáculo “RE: Antígona”, pelo Teatro Praga. Assistiu-se, pois, a uma “Antígona” que intentava revisitar o tema sofocliano, sem se aproximar dele… Há muitas Antígonas, talvez demasiadas. Assim o Teatro Praga opta para que esta nova abordagem não seja sobre Antígona nem anti-Antígona. Ou seja, como regista a sinopse desta peça: “RE: Antígona mata Antígona, de todas as formas que se lembrar, para lhe dar a morte a que nunca teve direito.”
O regresso de um dos grandes espectáculos da temporada passada, mais de um ano depois, “As Bruxas de Salém”, uma pequena localidade dos Estados Unidos da América, voltam a assombrar o palco do Teatro Nacional São João.
Como informa o TNSJ, na verdade, as bruxas “nunca desapareceram”. “O medo, a mentira, a manipulação e a força destruidora da vingança continuam a gerar as suas vítimas, todos os dias, nos jornais e nas televisões, nas ruas e nas redes sociais. Inspirada num caso histórico – os processos de bruxaria que varreram essa população do Massachusetts puritano em 1692 –, a peça de Arthur Miller, estreada em 1953, traça um paralelo entre esse episódio e a perseguição movida pelo senador McCarthy aos comunistas norte-americanos durante a chamada ‘caça às bruxas’, nos anos 50”, adianta a nota informativa do TNSJ.
Com encenação de Nuno Cardoso, “As Bruxas de Salém” estão de regresso para mais uma temporada. “O Diabo anda à solta”, outra vez. “Ou será que eu sonhei isto?”, questiona-se, talvez, quem lê a mesma nota informativa do TNSJ.
E ainda em reposição… Já em Dezembro, entre os dias 12 e 20, no Teatro Carlos Alberto, poderemos assistir ao espectáculo “O 25 de Abril Nunca Aconteceu”, com texto e encenação de Ricardo Alves. A peça “O 25 de Abril Nunca Aconteceu” é uma forma descomplexada de homenagear os 50 anos da Revolução dos Cravos, desafiando-nos a tomar consciência de como a liberdade e a democracia nos fazem tanta falta: “Liberdade. A coisa mais linda e mais certa da minha vida.” A referida peça é levada ao palco pelo Teatro da Palmilha Dentada.
Depois de Ibsen, na temporada passada no TNSJ, e de “Os Espectros”, é o momento da peça “O Pelicano” e da declaração inicial: “Começamos, esta noite, com uma tragédia / E as tragédias não são muito divertidas.” Como lemos na sinopse sobre este espectáculo teatral, Ingmar Bergman conta que o autor costumava dirigir-se a alguns dos seus contemporâneos com estas palavras: “Toma cuidado! Na minha próxima peça vou ajustar contas contigo.” Assim, parece que também chegou o momento de o encenador Nuno Cardoso ajustar contas com August Strindberg.
E não podia faltar um momento teatral para os mais pequenos. Gosto de pensar que é para todos, graúdos e miúdos: “O Rouxinol e o Imperador da China”. É um dos mais belos contos de Hans Christian Andersen, escrito em 1843. A ópera estreada no Teatro Nacional de São Carlos em 2023, do compositor e libretista Sérgio Azevedo reacende esta bela alegoria sobre a liberdade. Uma “ópera-miniatura” em quatro actos, para três vozes solistas, coro misto e orquestra sinfónica.
Por sua vez, entre 31 de Outubro e 10 de Novembro, no Teatro Carlos Alberto, estará em palco, pela companhia Teatro do Bolhão, o espectáculo “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, com encenação de Maria João Vicente.
Camilo Castelo Branco no palco do TNSJ, evocando a obra “Amor de Perdição”, publicada em 1861 e, muitas vezes, representada nos palcos dos teatros amadores e imortalizada no cinema por Manoel de Oliveira (em 1978) e, antes (em 1921), por Georges Pallu, regressa ao TNSJ/Teatro Carlos Alberto.
Esta obra foi escrita quando o autor se encontrava preso na Cadeia da Relação do Porto por causa de um amor proibido. Camilo Castelo Branco fala assim do livro “Amor de Perdição”: “Escrevi o romance em quinze dias, os mais atormentados de minha vida.”
“Quem nunca ‘morreu’ de amor? Quem nunca esteve desesperadamente apaixonado aos quinze anos? Sonhou ser Romeu ou Julieta? Pedro ou Inês? Ou se comoveu com a história de Teresa, Simão e Mariana?”, interroga-se no texto da sinopse desta peça, prosseguindo, pouco depois: “Mas o autor é tão hábil a despertar as lágrimas como a provocar o riso. Sempre que regressamos a este texto, tudo é novo. Tal como no teatro, onde nunca nada se repete da mesma maneira. Bem-vindos a um novo Amor de Perdição.”
Trata-se, pois, de uma coprodução do TNSJ e do Teatro do Bolhão.
Começam hoje (quinta-feira, 3 de Outubro) e decorre até ao próximo domingo (6 de Outubro), também no Teatro Carlos Alberto, “As grandes comemorações quase oficiais do período histórico habitualmente conhecido como Processo Revolucionário em Curso”, organizadas pela Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto (TEP) e da ASSéDIO – Companhia de Teatro.
Entretanto, o 25 de Abril continua a ser lembrado. Agora, pelo TEP e pela ASSéDIO, estruturas teatrais que se associam para celebrar o quinquagésimo aniversário do Processo Revolucionário em Curso (PREC), nos anos de 1974 e de 1975. Em nota informativa, o TNSJ acrescenta que “As grandes comemorações… é um espectáculo “que revisita alguns dos principais momentos, protagonistas e discussões do PREC, visando problematizar e contrariar a ideia de que este foi um período dominado pelo caos e por excessos ideológicos.” Para o efeito, como sublinha o TNSJ, “criaram uma Comissão de Festas Populares, constituída por artistas e académicos, encarregada de conceber a estrutura PRECformativa e de discutir as linhas orientadoras da celebração”.
Como em temporadas anteriores, continuarão as “Leituras no Mosteiro”, iniciadas a 17 de Setembro e até 17 de Dezembro, no Mosteiro São Bento da Vitória, organizadas pelo Centro de Documentação Teatral do TNSJ, com a direcção artística (ou coordenação) de Paula Braga e do encenador Nuno Cardoso.
Junto a toda esta bela programação, não posso deixar de mencionar a promissora notícia da intenção por parte do presidente do Conselho de Administração do Teatro Nacional São João de querer promover a integração das pessoas em situação de sem-abrigo que dormem nas saídas de emergência do edifício: “O [Teatro Nacional] São João está a preparar caminho para, em 2025, em parceria com estas outras entidades, vir a realizar proje[c]tos que excedem este problema localizado no edifício do São João, com o obje[c]tivo de promover o desenvolvimento, a integração das pessoas em situação de sem-abrigo ou de emergência social.”
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“A palavra tem corpo, respira, sopra…”
O País, o Porto e, em especial, a comunidade teatral lamentam o desaparecimento do encenador Rogério de Carvalho. O TNSJ lembra Rogério Ferreira de Carvalho, que nasceu em Angola, em 1936, e que nos deixou, a 22 de Setembro de 2024, aos 88 anos: “Em 2019, escreveu no programa de sala de Rei Lear, de Shakespeare, espe[c]táculo coproduzido pelo Ensemble – Sociedade de A[c]tores e o Teatro Nacional São João: ‘O conhecimento do teatro nunca está acabado.’ Uma frase que nos devolve por inteiro a sua inquietação, a sua humildade, a sua grandeza.”
Lembro-me, especialmente, de uma das primeiras encenações de “O Cerejal” (“O Jardim das Cerejeiras”, nalgumas traduções), de Anton Tchékhov, realizada com o TEAR (Teatro Estúdio de Arte Realista), na desaparecida sala de espectáculos TEARTO, edificada pelo TEAR, na Rua do Heroísmo, na cidade do Porto. O cenário de espelhos e de vidros, ao fundo, uma mesa de bilhar, um comboio em miniatura e o universo que Rogério soube aproximar tão bem ao universo criado pelo escritor e dramaturgo russo. Um mundo em ruínas e em queda, a alusão ao jogo e à infância, a morte da Natureza e uma sociedade fragmentada à espera de uma revolução!
Entre as personagens, Firs1, um mordomo (ex-servo) de 87 anos, interpretado nessa encenação por José Pinto, é o retrato da ruptura e da queda. Deambula pelo cenário quase como um fantasma, com poucas falas, tendo sido abandonado e esquecido na propriedade vendida.
Foi um espectáculo de jovens actores, alguns com idades que não correspondiam às suas personagens, mas que espelhava o encanto do autor, da encenação e o talento dos intérpretes: António Capelo, Jorge Pinto e Emília Silvestre (nesse momento, grávida do seu primeiro filho, Ricardo).
Era o ano de 1989. Mais tarde, em 2007, Rogério de Carvalho voltaria a pegar neste texto numa nova encenação com a companhia Ensemble – Sociedade de Actores, no Teatro Carlos Alberto.
Há um momento sublime em Tchékhov e que está na sua peça “A Gaivota”. Uma personagem, na quietude do lago e da paisagem, lança esta frase que sempre me comoveu pela simplicidade e pela profundidade de como foi escrita: “O anjo do silêncio passou por aqui.” Assim foi, para mim, Rogério de Carvalho. Uma espécie de anjo do silêncio teatral, construindo os mais belos momentos de encenação, sempre apoiado em grandes autores, aos quais imprimiu o seu selo particular de criador.
Julgo ter visto quase toda a sua obra realizada no Porto, no TNSJ (a exemplo da peça “Os Negros”, de Jean Genet, em 2006), com o TEAR e com a companhia Ensemble, destacando “As Boas Raparigas vão para o céu, as más para todo o lado”, que consistiu num projecto teatral de que foi director artístico.
Entre os seus últimos trabalhos, recordo o belíssimo díptico de Molière “O Avarento” e “O Doente Imaginário” (com o Ensemble – Sociedade de Actores), ao qual faltou apenas a peça “Tartufo”, que muito bem poderia ter encenado com o Jorge Pinto, uma vez mais como protagonista… Refira-se que Rogério de Carvalho encenou esta peça também da autoria de Molière, em 2014, com a Companhia de Teatro de Almada.
A vida é assim, não há tempo para tudo. Mas o Rogério de Carvalho teve tempo para muitas criações belas, das quais guardaremos memória, para sempre.
Cumprimentei o seu filho Carlos telefonicamente, a quem não conheço, transmitindo os meus sentimentos de espectador e de admiração. Não fiz parte do círculo íntimo do Rogério de Carvalho. Porém, fomos íntimos através dos seus espectáculos. Como espectador, obrigado!
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Nota:
1 – Um dos principais temas da peça é o modo como as pessoas são afectadas pelas mudanças sociais. A emancipação dos servos, em 19 de Fevereiro de 1861, por Alexandre II (1818-1881), da Rússia.
Agradeço ao actor e amigo Jorge Pinto, do Ensemble – Sociedade de Actores, pelas informações dispensadas.
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03/10/2024