A “rentrée” teatral do Porto

 A “rentrée” teatral do Porto

A nova temporada do Teatro Nacional São João arrancou fora de portas com a estreia de “O Canto do Cisne”, de Tchekhov, na Sala Estúdio Perpétuo. (porto.pt)

Onde há arte, onde há talento, não há espaço para velhice, não há espaço para solidão ou doença. Até a morte é apenas metade. (Anton Tchékhov, autor de “O Canto do Cisne”)

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Com aproximadamente quinze dias de diferença, o Ensemble – Sociedade de Actores estreou, no Salão Ático do Coliseu do Porto, o seu espectáculo “Triedro + Actores”, um convite músico-teatral para nos adentrarmos na casa de um actor e no seu processo de criação… A casa do actor Raul Damásio é habitada por espíritos. São provocadores, músicos e actores, das mais rebuscadas inquietações, interrogações e ilusões. São criaturas, criativos e criadores à procura da criação.

(Direitos reservados)

Como consta na breve apresentação (ou folha de sala) deste evento cultural, no espetáculo “TRIEDRO + ACTORES”, “interrogamos o processo criativo do artista e a forma do diálogo performativo entre estes processos no teatro e na música”. Aos TRIEDRO (Ricardo Pinto no piano, Frederic Cardoso nos clarinetes e Paulo Costa na percussão) juntam-se os actores João Paulo Costa, Jorge Pinto, António Parra e Rafael Ferreira. Os textos são de Álvaro Garcia de Zúñiga e Francisco Luís Parreira. 

As linguagens da música e do teatro são enleadas num exercício de histórias, de memórias, de climas e de abstrações. Assistimos a um espectáculo substancialmente sonoro, provocador, divertido, inquietante e inspirador que o Ensemble – Sociedade de Actores, em parceria com o Coliseu, apresentou no dia 30 de Agosto, no Novo Ático do Coliseu Porto Ageas.

(Direitos reservados)

Falei de um espectáculo músico-teatral, pois a parte musical tem, neste trabalho, uma importância fundamental, criando atmosferas e tempos próprios ou propícios para a representação e para a evocação onírica. Estiveram no palco dois dos mais destacados actores da sua geração (setenta anos!) Jorge Pinto e João Paulo Costa, dois comediantes aos quais me sinto ligado, a nível geracional, por laços de amizade e de profissão. Agradeço ao Ensemble este reencontro de actores, num novo espaço para a criação e difusão teatral.

No dia 11 de Setembro, a Seiva Trupe, aproveitando a data da sua fundação, há 50 anos, apresentou em estreia “O Canto do Cisne”, numa coprodução com o Teatro Nacional São João (TNSJ), encenada pelo director artístico daquele teatro na Sala-Estúdio Perpétuo, que acolhe a Seiva Trupe desde o ano passado. Assinalando uma carreira de mais de 60 anos de actor e de encenador, Júlio Cardoso protagoniza o monólogo do dramaturgo russo num espectáculo que estreou no dia em que a companhia assinalou o 50.º aniversário.

“O Canto do Cisne”, do actor e encenador Júlio Cardoso. (Créditos fotográficos: Paulo Pimenta – Facebook)

“O Canto do Cisne” é uma referência a uma antiga crença de que o cisne-branco (Cygnus olor) é completamente mudo durante toda a sua vida, mas pode cantar uma bela e triste canção antes de morrer. Esta antiga crença foi refutada por Plínio, o Velho na sua obra “Naturalis Historia (livro X, capítulo 32). Não obstante, a lenda, aparece prenunciada pelo Sócrates platónico (na obra “Fédon”), no seu último discurso. A expressão tornou-se uma metáfora, particularmente teatral e dramática, como prenuncio de morte, ideia que encontramos em “Schwanengesang(oucanção dos cisnes”), que é uma colecção de músicas escritas por Franz Schubert, no final de sua vida e publicadas postumamente, tendo falecido a 19 de novembro de 1828.

Retrato de Schubert na zona rural vienense. (Créditos fotográficos: A DagliI Orti/De Agostini/Getty Images – theguardian.com)

Na peça de Tchékhov, o actor (personagem, de 78 anos) Svetlovídov acorda a meio da noite, depois de ter adormecido no seu camarim, após uma representação. Ao acordar sozinho, com medo e esquecido por todos, chama por ajuda. As portas do teatro estão fechadas por fora e Ivanytch, o ponto do teatro acode ao seu encontro. Este encontro inesperado leva os dois homens a evocarem as horas gloriosas do teatro no passado e a carreira de Svetlovídov, agora idoso e doente. Enquanto passa a noite, o velho actor recitará fragmentos de suas mais célebres interpretações, como “Boris Godunov”, “Othello” ou “Rei Lear”, a noite se transformará numa apresentação magistral que é o seu canto do cisne. Peça num acto, de Anton Tchekhov, que o médico e dramaturgo russo escreveu quando tinha 26 anos de idade, no final de 1886 e no início de 1887.

Cisne-branco ou cisne-mudo. (pt.wikipedia.org)

Mário Moutinho, actor portuense, que conhece profundamente a peça e o actor Júlio Cardoso, escreve (para o programa do espectáculo do TNSJ) que, segundo Deniz Jacinto, no prefácio da versão portuguesa publicada, em 1962, por Correia Alves, nesta peça, como em “A Estrada Real”, “está patente o monólogo das personagens, inserido em falsos diálogos, onde cada uma segue, com independência, o fio dos seus próprios pensamentos ou retorna à ideia fixa que a domina”.

Regista ainda Mário Moutinho que, na sua adaptação, “Nuno Cardoso constrói para Júlio Cardoso um Svetlovídov que não dialoga com o ponto, apenas consigo mesmo, com a sua solidão, acentuando a carga dramática dos monólogos, adensados com as memórias, o confronto com a efemeridade do sucesso, a presciência do abandono, da morte”.

A seu ver, Deniz-Jacinto, que define esta peça como “um comovente depoimento da decadência de um actor”, nela reconhece “a paródia ou a tragédia que são interiores às personagens; a trivialidade dos factos que acontecem e a naturalidade com que se desenrolam, sem intriga nem acção exterior; a dignidade das figuras humanas em face das vidas monótonas e vazias que lhes é dado viverem”.   E refere, igualmente, que a Júlio Cardoso, que teve sempre uma intensa vida nos palcos “e no mundo, é proposta a representação da dignidade humana de uma dessas vidas monótonas e vazias”.

Ao encenador Nuno Cardoso, director artístico do TNSJ, agradeço, como espectador e amigo do Júlio Cardoso, esta bela ocasião de festejar e de celebrar, no palco, a carreira de 64 anos do Júlio, cuja actividade cultural  transcendeu fora do palco, em diferentes instituições: na Cooperativa Árvore, no TEP (Teatro Experimental do Porto), nos Modestos (histórica companhia teatral portuense),  na Seiva Trupe, na ACE (Academia Contemporânea do Espectáculo – Escola de Artes), na AMAR – Associação Mutualista dos Artistas – Casa do Artista/Norte, no FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica), no Círculo Portuense de Ópera, na construção e criação do Teatro do Campo Alegre, assim como no apoio fundamental que deu na criação do primeiro Curso Superior de Teatro da cidade do Porto (em 1982), na Cooperativa de Ensino Superior Árvore, (hoje, ESAP – Escola Superior Artística do Porto), de mãos dadas com o escultor José Rodrigues, com Manuel Deniz-Jacinto e com Eduardo Calvet de Magalhães.

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Nota final:

No dia 26 de Setembro, encontrei-me com a filha da actriz Alice Vasconcelos, dando-me a triste notícia da morte da sua mãe, nos primeiros dias de Janeiro deste ano. Alice foi uma actriz de uma nutrida carreira no Teatro Experimental do Porto e na Seiva Trupe, especialmente. Participou como figurante no episódio “Fim-de-semana em Torremolinos” (de 1994) da série da RTP 1 (série do do centro produção do Porto da RTP), “Os Andrades”.

“A Casa do Rio 2”, de 6 a 18 de Dezembro de 2022.(tmsm.pt)

Descobri que, em Dezembro de 2022, ainda participou com mais de 90 anos, no Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana do Castelo, na peça (saga, comédia) “A Casa do Rio 2”. Era uma actriz temperamental com uma voz característica, colaborou comigo, nos anos 80, na cidade do Funchal, nas minhas encenações com o Teatro Experimental do Funchal… E era uma amiga! Julgo que, pelo que me conta a sua filha, poucos da família teatral do Porto sabem do seu falecimento.

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02/10/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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